JERRY 8 3/4 (1964)
Com
“The Nutty Professor” (As Noites do Dr. Jerryl), de 1963, “The Patsy” (Jerry 8
3/4), do ano seguinte, Jerry Lewis afirma-se não só como um dos grandes génios
da comédia cinematográfica, mas igualmente como um grande cineasta e um autor
completo. Ele não é só o actor que reinventa um género, mas também um
argumentista talentoso e extremamente inteligente e, ao mesmo tempo, um
realizador subtil, sensível, inovador, moderno.
“The
Patsy” em português pode ter várias interpretações, desde pacóvio, tolo,
ingénuo, trouxa, bode expiatório mas, em todas elas, acabará por resumir-se a
alguém que, pelas suas características, facilmente se deixa enganar. O título português procura apanhar o
impacto de Fellini 8 ½, estreado anos antes, para o associar a esta obra de
Jerry que também se passa no mundo do cinema. Não é a Cinecittà de Fellini, mas Hollywood. A Hollywood dos sonhos de
Malcolm Smith, um certo cinéfilo fanático de “Um Espada para Hollywood” que
agora surge na figura de um empregado de hotel na meca do cinema, que um dia se
descobre elevado à categoria de estrela do mundo do espectáculo, sem que tenha
feito nada para isso.
Na verdade, nas imagens iniciais a câmara
acompanha o despenhar de um avião e sabe-se depois que entre os passageiros se
encontrava o célebre comediante Wally Brandford. Os jornais choram a morte do
popular actor, mas a sua equipa chora o facto de poder vir a ficar sem emprego.
Quem escreve os guiões, quem trata do marketing, quem responde ao correio, quem
se ocupa da imagem do actor, quem apura a voz ou quem examina os contratos, sem
actor fica desempregado. A menos que surja rapidamente alguém que o substitua.
Mas quem pode ser esse alguém, que seja suficientemente ingénuo e manejável
para se adaptar ao papel? É nessa altura da reunião que entra Stanley Belt
(Jerry Lewis) com a bandeja com taças e champanhe para a equipa afastar as
mágoas. A entrada é, como se espera, a mais desastrada possível e Stanley é
desde logo olhado como possível sucessor do defunto. E todos se aprestam em
transformar o desajeitado bell boy num actor de primeiríssima água. Lições de
dicção, de música, de arte de representar, de boas maneiras, idas ao alfaiate
das vedetas (onde Stanley Belt quer fatos ao jeito de George Raft e descobre
ali ao lado o seu intérprete preferido), visitas a cabeleireiros de nomeada,
tudo fazem os membros da equipa para não ficarem no desemprego. Mas a
personagem visada não mostra qualquer tipo de
progressos nesta difícil arte de ser quem não é.
Ele é duro de ouvido para
gravar canções, mas a oportunidade é excelente para se assistir a um fabuloso
trio de cantoras, todas elas interpretadas por Jerry Lewis de forma magistral.
Dão-se festas de lançamento da nova coqueluche de Hollywood, o que permite a
Stanley recordar outros bailes da sua juventude onde tudo corre mal. Mas na festa
cruza-se com Hedda Hopper, a própria, uma das mais célebres bisbilhoteiras de
Los Angeles, a quem faz notar o horrível chapéu que exibe. Ela acha
graça e começa a lançar as bases da moralidade do
filme: a autenticidade é o mais importante a vida. Só quando Stanley se
descobre igual a si próprio, durante um “The Ed Sullivan Show”, é que a magia
nasce. “Tentaram transformar-me no que não sou”, lamenta-se Stanley Belt. O
argumento de Jerry Lewis e Bill Richmond é extremamente bem desenvolvido e
inteligente na forma como analisa alguns aspectos da máquina de criar e
triturar vedetas do mundo do “show business”, no artificialismo desta fábrica
de sonhos (a cena final procura mesmo “mostrar” como realidade e ficção se
podem associar na manipulação do espectador). A fotografia de W. Wallace
Kelleyé magnífica, bem como o cuidado posto na decoração e nos ambientes. Na
interpretação, Jerry Lewis procura obviamente homenagear alguns grandes actores
como Peter Lorre, Everett Sloane, Phil Harris, Keenan Wynn, John Carradine ou a
jovem e bonita Ina Balin, que constituem a equipa órfã de vedeta, mas também
uma série de outros que aparecem fugazmente nos chamados “cameos” e que vão dos
já citados George Raft, Hedda Hopper ou Ed Sullivan, a Ed Wynn, Mel Tormé,
Rhonda Fleming, Scatman Crothers, Phil Foster, Billy Beck, Hans Conried,
Richard Deacon, Del Moore, Neil Hamilton, Buddy Lester, Nancy Kulp, Norman
Alden, Jack Albertson, Richard Bakalyan, Jerry Dunphy, Kathleen Freeman, Norman
Leavitt, Eddie Ryder, Lloyd Thaxton, Lorne Greene, Pernell Roberts, Michael
Landon, Dan Blocker e Fritz Feld. Até o argumentista Bill
Richmond tem uma curta aparição, como pianista. Personalidades umas mais
conhecidas do grande público do que outras (mas todas bastante reconhecíveis
para as plateias norte-americanas), o seu aparecimento nesta obra é um óbvio
reconhecimento do seu talento e uma justa homenagem do cineasta aos seus pares.
Este foi o último filme de Peter Lorre, que morre antes da sua estreia, e um
dos derradeiros de Everett Sloane (este actor desaparece depois de integrar
outro filme ao lado de Jerry Lewis, “The Disorderly Orderly”, igualmente de
1964).
“The
Patsy” inicialmente chamava-se “Son of Bellboy”, procurando de certa forma ser
uma continuação de “The Bellboy” (Jerry
no Grande Hotel), primeira realização de Jerry Lewis em 1960. Inclusive o
protagonista de ambos chama-se Stanley.
Curiosidades
extras: a cena inicial do desastre de avião foi inicialmente rodada para
"The Mountain" (A Montanha), de Edward Dmytryk (1956). Introduzida
com aproposito nesta obra. Existe um filme de 1928, interpretado por Marion
Davies, chamado igualmente “The Patsy”. Nada a ver com este.
JERRY 8 3/4
Título original: The Patsy
Realização: Jerry Lewis (EUA, 1964);
Argumento: Jerry Lewis, Bill Richmond; Produção: Ernest D. Glucksman, Arthur P.
Schmidt; Música: David Raksin; Fotografia (cor):W. Wallace Kelley; Montagem:
John Woodcock; Casting: Edward R. Morse; Direcção artística: Cary Odell, Hal
Pereira; Decoração: Sam Comer, Ray Moyer; Guarda-roupa: Edith Head;
Maquilhagem: Nellie Manley, Wally Manley, Harry Ray, Jack Stone, Wally
Westmore; Direcção de Produção: William Davidson; Assistentes de realização:
Ralph Axness, Dale Coleman, Howard Roessel; Departamento de arte: Jim Cottrell,
Earl Olin, Gene Lauritzen, Martin Pendleton; Som: Howard Beals, Charles
Grenzbach, Hugo Grenzbach, Bud Parman; Efeitos visuais: Farciot Edouart, Paul
K. Lerpae; Companhias de produção: Paramount Pictures, Patti Enterprises; Intérpretes: Jerry Lewis (Stanley Belt
/ SingCantoras do Trio), Ina Balin (Ellen Betz), Everett Sloane (Caryl
Fergusson), Phil Harris (Chic Wymore), Keenan (Harry Silver), Peter Lorre
(Morgan Heywood), John Carradine (Bruce Alden), Hans Conried (Prof. Mulerr),
Richard Deacon (Sy Devore), Del Moore (policia), Scatman Crothers (engraxador),
Neil Hamilton (barbeiro), Buddy Lester, Nancy Kulp, Lloyd Thaxton, Norman
Alden, Jack Albertson, Henry Slate, Gavin Gordon, Ned Wynn, Rhonda Fleming
(Rhonda Fleming), Phil (Mayo Sloan), Hedda Hoppe (Hedda Hopper), George Raft
(George Raft), Mel Tormé (Mel Tormé), Ed Wynn (Ed Wynn), Ed Sullivan (Ed
Sullivan), The Four Step Brothers (The Step Brothers), etc. Duração: 101 minutos; Distribuição em
Portugal: Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 6 anos.
JERRY LEWIS E A COMÉDIA
NORTE-AMERICANA
A
comédia americana teve, entre os anos 20 e 30 do século XX, um período
particularmente brilhante, durante o qual o burlesco foi rei. São desta época
os nomes de Charles Chaplin, Buster Keaton, Mack Sennett, Harold Lloyd, Irmãos
Marx, W. C. Fields, Harry Langdon, Laurel e Hardy, Chester Conckin, Mack Swain,
Mabel Normand, Ben Turpin, Larry Sernon, Fatty Arbuckle, Charley Chase, Andy
Clyde, Louise Fazenda, Joe. E. Brown e alguns mais.
Utilizando
os mais variados processos e recorrendo a figuras de características muito
diversas, os actores atrás mencionados nada deixaram de pé, após a sua passagem
explosiva e purificadora. Era o período das gargalhadas mortíferas que
provocavam uma autêntica política de "terra queimada". Depois
seguiu-se um tempo relativamente descolorido e medíocre que caracterizou as
duas décadas seguintes e se prolongou ameaçadoramente pelos anos de 60. Havia
ainda em 40 cineastas como Frank Capra, Leo McCarey, Frank Tashlin, Howard Hawks,
George Stevens, entre outros, que nos deram comédias admiráveis. Mas nunca mais
apareceu o grande cómico de completa autoria. Os homens para todo o serviço, do
drama à comédia, abundavam, em contrapartida. Referimo-nos a Norman Taurog,
Michael Gordon, Henry Koster, George Marshall, Normam Panama, Richard Thrope,
Joshua Logan, Norman Jevison (na sua primeira fase), Charles Walters, George
Sidney, etc., etc. O que não quer dizer que por vezes esses realizadores não
lograssem obras de referir. Já na década de 60, como exemplo, aqui deixamos
alguns títulos que melhor ilustram a permanência de um género de tradições
nobres nos E.U.A: “Conversa de Travesseiro” (Michel Gordon), “Ela e os seus
Maridos” (J. lee Thompson), “Uma Americana em Paris” (Robert Parrish), “O Mundo
Maluco” (Stanley Krarner), “Vêm aí os Russos!” (Norman Jewison), “As Noivas do
Papá” ou “Quando Ele era Ela” (Vincente Minnelli), etc.
Mas os
anos de 60, para além de meia dúzia de revelações, rodam-se sob os auspícios de
Billy Wilder (“Quanto Mais Quente, Melhor”, “Beija-me Idiota”, “O Apartamento”,
“Irma, La Douce”, “Como Ganhar um Milhão”, “A Vida Intima de Sherlock Holmes”,
“Amor à Italiana” ou “A Primeira 'Página”); Richard Quine (“Sortilégio de
Amor”, “Quando Paris Delira”, “A Ingénua e o Atrevido”, “Como Matar sua
Mulher”); Blake Edwards (“A Pantera Cor-de-Rosa”, “Um tiro às Escuras”, “A
Grande Corrida à Volta do-Mundo”, “What Did Vou Do in the War Daddy?” ou “A
Festa”) e Jerry Lewis. Sobretudo Jerry Lewis. Retomando a tradição dos grandes
criadores (Chaplin, Keaton, Marx, Lloyd, etc.), Jerry Lewis foi por essa altura
o único a poder ombrear com o nome dos seus geniais predecessores.
Posteriormente haveria que ter em conta um autor/actor como Woody Allen (“O
Inimigo Público”, “Bananas”, “O Grande Conquistador”. “O ABC do Amor”, “O Herói
do Ano 2.000” e tantos outros filmes que alternam a comédia e o drama, por
vezes num registo de belíssimo humor da melhor tradição judaica da língua yiddish), ou um cineasta também actor
(e também judeu) como Mel Brooks (“O Falhado Amoroso”, “Balbúrdia no Oeste” ou
“Frankenstein Júnior”). A verdade é que Jerry Lewis, Woody Allen e Mel Brooks
asseguraram um lugar insubstituível ao "humor judeu" norte-americano.
Depois
do riso demolidor dos irmãos Marx, depois da turbulência exaustiva de Bucha e
Estica, depois do trágico lirismo de um Chaplin ou Keaton, Jerry Lewis,
sobretudo a partir de 1960 (data da sua primeira realização, “Jerry no Grande
Hotel”), aparece-nos como o mais directo continuador desses cómicos geniais.
A
carreira de Jerry Lewis pode dividir-se cronologicamente em três períodos de
características definidas, denunciando um esforço contínuo e sistemático de
renovação e superação, de amadurecimento de linguagem e enriquecimento de
processos.
Quando,
em 1949, Hal Wallis contrata a dupla Jerry Lewis-Dean Martin, oferecendo-lhe
uma carreira na Paramount, ele pensava sobretudo em arranjar substitutos para
uma outra dupla que caía progressivamente em descrédito (Abbott e Costello).
Durante alguns anos, grande parte do público e a maioria da crítica teimou em
ver neles sucessores menores do burlesco. Jerry Lewis, embora colocado nos “top
ten” dos filmes do ano (no que se refere a receitas, logo a adesão de público),
era crismado de "palhaço", mero fazedor de "caretas"
gratuitas, cómico de segundo plano. Raros foram os eleitos que, para lá do
aparente desinteresse de certos filmes (devido à banalidade de alguns
argumentos e à mediocridade da realização de quase todos), vislumbraram uma
personalidade própria, um cómico de características seguras, um actor que, de
obra para obra, aperfeiçoava o seu jogo, dominava os fabulosos recursos
histriónicos e gestuais, impondo uma figura e, por detrás dela, uma
personalidade.
Nesta
primeira época, que vai até 1956, Jerry Lewis (sempre acompanhado por Dean
Martin) interpretou dezasseis títulos que, de um modo geral, parodiaram, de
forma irregular e resultados variáveis, algumas instituições americanas e
diversos "géneros" da cinematografia daquele país. Ele havia passado
pelas forças armadas, satirizando o exército ("Recrutas... Sentido"),
a marinha ("Marujo, o Conquistador"), a aviação, melhor dizendo, os
paraquedistas ("Os Heróis do Medo"), e também as experiências
atómicas e o sensacionalismo dos mass media ("O Rapaz Atómico"), o
golf ("O Grande Jogador"), as corridas de cavalos ("Dinheiro em
Caixa"), o filme de terror ("O Castelo do Terror"), o western
("O Rei do Laço"), o circo ("O Rei do Circo"), o show
business ("O Estoira Vergas"), os comics, o filme de gangsters e o
"musical" ("Pintores e Raparigas"), Hollywood e o star
system ("Um Espada para Hollywood), etc.
À
mediocridade de alguns destes filmes, opõe-se a riqueza de imaginação, a
vertiginosa sucessão de gags, a fulgurante acutilância crítica de um Frank
Tashlin (autor de "Pintores e Raparigas" e "Um Espada para
Hollywood"), cuja colaboração com Jerry Lewis parece ter sido
profundamente influente na futura carreira do actor. Somente, e por instantes,
Norman Taurog se lhe assemelha, nalgumas sequências de "Os Estoiras Vergas",
"O Rapaz Atómico" ou "Barbeiro e Professor". Muito, porém,
do que de melhor vários destes filmes da primeira fase de Jerry Lewis comportam
é-lhe ainda devido, dado que, sob diversos pseudónimos, é o actor quem
interfere ao nível da criação de gags e seu desenvolvimento. Com a ruptura
verificada em 1956 entre Jerry Lewis e Dean Martin (ruptura essa que é
consequência em grande parte, de ciúmes deste último, em virtude do êxito
popular do sócio, que lhe ensombrava a imagem), o primeiro torna-se o seu próprio
produtor, rodando sob a direcção de Tashlin (de alguma forma, a partir daqui,
seu "mestre espiritual"), várias obras de que é protagonista isolado:
"Jerry, Ama-seca", "Jerry no Japão", "Cinderelo dos
Pés Grandes", "Dinheiro e só Dinheiro", "Um Namorado com
Sorte", "Jerry, Enfermeiro sem Diploma", entremeadas com outras
que não se lhes comparam em importância e significado. Os contornos da figura
de Jerry Lewis vão-se definindo, ganhando contextura, multiplicando-se já em
heterónimos, partes de um mesmo todo que o actor pulveriza em direcções
diversas. Entre a grande ingenuidade e o profundo pânico perante a realidade
que o cerca e a que se não consegue adaptar facilmente, entre a pesada herança
do matriarcado e o pavor do sexo oposto, entre o culto abnegado da amizade, que
o conduz a situações de excessiva boa vontade (que contra ele próprio se
voltam), e a crueldade da humilhação física e moral a que constantemente o
sujeitam, entre a inconsciência do perigo e a solidão desesperante, Jerry vai
progressivamente desenhando uma personagem que, em traços excessivos é certo,
mas de rara lucidez, nos devolve a fisionomia do americano médio, povoado de
temores e frustrações, aterrorizado (e fascinado) pelo envolvimento mecânico,
pela agressividade do comportamento, pelos traumas colectivos. Um dia, o
crítico Robert Benayoun chamou-lhe um "anti-James Dean" e com alguma
razão, dado que a figura de "desadaptado" em relação à realidade
social norte-americana se expressa a um nível de total desromantização, de ruptura
risível. Produto de uma sociedade industrializada até à medula, competitiva ao
desregramento, ele é o retrato robot desse descontrolamento geral, que em
termos sociológicos se poderá chamar "alienação". Uma personagem em
busca de uma identidade, de um equilíbrio impossível, eis Jerry Lewis.
A
partir de 1960, à dupla responsabilidade de actor-produtor, alia a de
realizador e argumentista creditado. O cómico atingiu a estatura de "autor
total" e assume-se por inteiro. "Jerry no Grande Hotel" assinala
a estreia e, daí em diante, dez títulos impõem-no como uma das grandes certezas
não só da comédia americana, como da cinematografia moderna. Em 1963, com
"As Noites Loucas do Dr. Jerryll" (que será possivelmente uma das
suas obras mais perfeitas), adapta "O Médico e o Monstro", de Robert
L. Stevenson e, a partir dessa base, critica asperamente uma América onde o
"intelectual é vexado e ridicularizado e cujo génio é motivo para gracejos
perpétuos (Julius Kelp) e onde o monstro da agressiva vulgaridade (Buddy Love)
é preferido e louvado" (Benayoun dixit).
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