domingo, 11 de setembro de 2016

SESSÃO 49 - 13 DE SETEMBRO DE 2016



OITO VIDAS POR UM TÍTULO (1949)


No final da década de 40 e inícios da de 50 do século XX, um dos estúdios ingleses mais célebres, o Ealing Studio, produziu um conjunto de comédias verdadeiramente invulgar, pela qualidade do seu humor, pelas características absolutamente britânicas desse humor, pela excelência da representação (onde sobressaiu Alec Guiness, entre outros). Títulos como “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), ou “The Ladykillers” (1955) são hoje em dia considerados clássicos indiscutíveis do chamado humor inglês. “Oito Vidas por um Título”, “O Homem do Fato Claro” e “O Quinteto era de Cordas”, sobretudo estes três títulos, são indiscutíveis referências desta época do cinema britânico e, igualmente, do trabalho excepcional de um actor que muitos consideram dos melhores de sempre em todo o mundo, Alec Guiness.
“Oito Vidas por um Título” tem como título original “Kind Hearts and Coronets”, que é uma citação ligeiramente alterada de um poema de um dos mais prestigiados escritores ingleses, Alfred Lord Tennyson. O poema, “Lady Clara Vere de Vere”, surgiu integrado no livro de 1842, “The Lady of Shalott and Other Poems”, e podia ler-se assim: “Trust me, Clara Vere de Vere, / From yon blue heavens above us bent / The gardener Adam and his wife / Smile at the claims of long descent. / Howe’er it be, it seems to me, / ’Tis only noble to be good. / Kind hearts are more than coronets, / And simple faith than Norman blood.” O título da obra de Robert Hamer filia-se, portanto, neste poema de meados do século XIX, uma época vitoriana, onde os contrastes sociais eram imensos, a hipocrisia e a violência constantes.
O filme de Robert Hammer parte de um argumento escrito pelo próprio Robert Hamer, de colaboração com John Dighto, segundo romance de Roy Horniman, “Israel Rank: The Autobiography of a Criminal” (1907), que relatava a vida e as façanhas criminosas de um judeu de ascendência italiana que confessara a autoria de vários crimes cometidos ao longo da vida numa sistemática vingança. O romance conheceu grande sucesso na época, pelo tom cínico e irónico com que relatava as proezas amorais de um herói pouco provável.
O que nos dá o filme: em 1868, na cela de uma prisão londrina, na véspera da sua execução, Louis Mazzani (Dennis Price), duque de Ascoyne, escreve as memórias, remontando a tempos passados quando a mãe se viu privada dos seus direitos de nobreza, como represália familiar por ter casado com um “simples” cantor italiano. Por causa disso, Louis Mazzani jura vingança e procura recuperar o posto nobilitário perdido, para o que precisa de “anular” oito membros da família Ascoyne. A narrativa é sóbria e delicada, contrastando em tudo com o narrado: um a um os vários possíveis pretendentes à sucessão vão sendo afastados do caminho, através de um pouco de veneno, um tiro de caçadeira, um pequeno naufrágio, uma morte natural, um balão atravessado por uma seta, uma explosão, uma colisão marítima, ou mesmo um apetitoso caviar… Há de tudo, um banqueiro, um padre, um capitão da marinha, um militar, uma senhora sufragista, um fotógrafo amador, e o mais espantoso é que os oito representantes da dinastia Ascoyne são todos interpretados brilhantemente por um único actor, Alec Guiness. De início, ele ia apenas interpretar quatro papéis, mas à medida que foi interiorizando a família, acabou por a dominar por completo, com uma mestria invulgar. Guiness era já um actor célebre, mas este filme encarregou-se de projectar o seu talento, colocando-o entre os melhores actores do mundo. Diga-se que o filme conta ainda com duas outras representações dignas de referência, Dennis Price, no cínico e eficaz serial killer dos Ascoynes, e a belíssima Joan Greenwood, na figura da jovem Sibella, uma notável presença, senhora de uma voz absolutamente inesquecível. 


Situando-se num período vitoriano, com a burguesia em ascensão, que se estabelecia como "middle class", limitada a norte pela "upper class", constituída por uma aristocracia em decadência, mas ainda vigorosa e a ocupar lentamente os lugares da alta finança e da governação, esta comédia de humor negro, mas de delicado e elegante humor (o que o torna ainda mais negro), é um retrato curioso dessa época. A família Ascoyne é um bom exemplo dessa aristocracia que domina, mas que se autodestrói pela ganância e pelos jogos de influência e de poder. Tudo com uma fleuma e uma discrição próprias da reserva britânica, ou não fosse o “humor negro” uma das características mais constantes da cultura inglesa.
Todos estes pormenores são descritos por Louis Mazzani que os fixa numas “memórias” que pretende deixar para a posteridade. Espera-o a forca, na manhã seguinte, depois de ter sido acusado e sentenciado (injustamente, neste caso) pelo assassinato de alguém que ele efectivamente não tinha morto. Quando o seu final de aproxima, ocorre o imprevisto, e quando este o coloca à porta da cadeia, uma nova reviravolta se anuncia. A ironia nunca se afasta desta obra que se torna de tal forma incómoda que nos EUA foi censurada, tendo-lhe sido amputados cerca de seis minutos e alterado o final (a ambiguidade do final inglês foi reduzida a um final mais politicamente correcto).
Claro que este filme, e seguramente a obra de Roy Horniman que lhe está na base, devem muito a “O Assassinato Considerado como uma das Belas-Artes”, de Thomas de Quincey, aparecido em livro em 1854, depois de ter surgido no “Blackwood's Magazine” em 1827, depois em 1839, acompanhado de uma continuação, e finalmente em volume, com um importante desenvolvimento dedicado aos crimes de John Williams. Essa visão do assassinato como uma “arte”, mais precisamente uma das “Belas-Artes”, reflecte esse humor muito próprio dos ingleses, e que este filme tão bem exemplifica (tal como outras obras de autores tão diversos de Hitchcock aos Monty Python). Diga-se, concluindo, que o título francês, “Noblesse Oblige”, se sente muito mais apropriado do que o português “Oito Vidas por um Título”, demasiado prosaico e pragmático para traduzir correctamente o espírito desta comédia brilhante.
Não só no plano do assassinato o filme se mostra um tanto ou quanto iconoclasta. Na verdade, em 1949, o adultério não era actividade muito vista no cinema, e nunca antes o fora mostrado numa das inúmeras películas produzidas pelos Ealing Studio, então dirigidos por Michael Balcon. Foi, pois, com alvoroço que o produtor viu o filme depois de rodado, descobrindo que Louis Mazzani, além de assassino, era igualmente um obstinado adúltero que mantinha com Sibella uma relação carnal (apenas sugerida no filme, mas sugerida de forma muito persuasiva e intensa) para lá do casamento desta com um amigo. Balcon ainda tentou remediar as coisas, mas Hamer era um realizador difícil de dobrar e manteve o filme intocável nesse aspecto.
A belíssima fotografia a preto e branco de Douglas Slocombe, a direcção artística de William Kellner, e a área “Il mio Tesoro”, da ópera “Don Giovanni”, de Mozart, são outros tantos motivos que levaram os inqueridos do British Film Institute, em 1999, a colocar “Kind Hearts and Coronets” em sexto lugar, entre os melhores filmes de sempre da cinematografia inglesa.


OITO VIDAS POR UM TÍTULO
Título original: Kind Hearts and Coronets
Realização: Robert Hamer (Inglaterra, 1949); Argumento: Robert Hamer, John Dighto, segundo romance de Roy Horniman; Produção: Michael Balcon, Michael Relph; Música: Ernest Irving; Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Peter Tanner; Direcção artística: William Kellner; Guarda-roupa: Anthony Mendleson; Maquilhagem: Barbara Barnard, Harry Frampton, Pearl Orton, Ernest Taylor; Direcção de produção: Leigh Aman, Hal Mason; Assistente de realização: Norman Priggen, John Hewlett, David W. Orton; Departamento de arte: Grace Bryan-Brown, Norman Dorme, Roger Hopkin, Jack Shampan, V. Shaw, R. Thurgarland; Som: Stephen Dalby, John W. Mitchell, Norman King; Efeitos especiais: Geoffrey Dickinson, Sydney Pearson; Companhia de produção: Ealing Studios (An Ealing Studios Production); Intérpretes: Dennis Price (Louis), Valerie Hobson (Edith), Joan Greenwood (Sibella), Alec Guinness (a familia D'Ascoyne: o duque / o banqueiro / o padre / o general / o almiranto carrasco), Clive Morton (Governador da prisão), John Penrose (Lionel), Cecil Ramage, Hugh Griffith (Lord High Steward), John Salew (Mr. Perkins), Eric Messiter (Burgoyne), Lyn Evans, Barbara Leake, Peggy Ann Clifford, Anne Valery, Arthur Lowe, Stanley Beard, Maxwell Foster, Peter Gawthorne, Molly Hamley-Clifford, Leslie Handford, Nicholas Hill, Fletcher Lightfoot, Cavan Malone, Laurence Naismith, Gordon Phillott, Jeremy Spenser, Ivan Staff, Richard Wattis, Carol White, Harold Young, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 29 de Junho de 1950.

EALING STUDIOS
“Ealing Studios” é uma produtora de filmes para cinema e de entretenimento diverso para televisão. Tem uma longa história, sendo presentemente, o mais antigo estúdio de cinema a operar no mundo. Nasceu em 1902, no local chamado Ealing Green, em Londres Oeste. Will Barker fundou aí uma produtora chamada “White Lodge”. Em 1931, o produtor teatral Basil Dean, já no sonoro, funda nesse espaço a Associated Talking Pictures, que se mantém em funcionamento até 1938, quando entra em declínio. Michael Balcon, vindo da MGM, passa então a controlar os destinos da produtora, insufla-lhe uma nova vida, com outros colaboradores e actores, refrescando o ambiente, tornando-a numa casa produtora lendária, sobretudo através das suas comédias, as “Ealing comedies”, que se instituíram rapidamente clássicos, a partir do fim da II Guerra Mundial: “Kind Hearts and Coronets” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), e “The Ladykillers” (1955). Os filmes da companhia passam então a ser distribuídos sob a sigla da “Rank Organisation”.
Durante este tempo, mas sobretudo nos anos 30 e 40, os Ealing Studios não só criam os seus actores de comédia típicos, como Gracie Fields, George Formby, Stanley Holloway ou Will Hay, mais tarde Alec Guiness, como se notalibilizam ainda por outro tipo de filmes, como os documentários realistas durante a II Guerra Mundial, com títulos que se recordam “Went the Day Well?” (1942), “The Foreman Went to France” (1942), “Undercover” (1943), “San Demetrio London” (1943), entre outros. Ainda em 1945, produz um thriller em episódios que deixou marca: “Dead of Night”.
Depois, durante quarenta anos, a BBC, entre 1955 e 1995, alugou o espaço e rodou ainda grande parte do seu material televisivo, telefilmes, séries, programas diversos. Chegou a possuir nesse espaço mais de 50 salas de montagem. A partir de 2000, a Ealing Studios passou sobretudo a casa distribuidora, mas algumas obras foram ainda rodadas nesses estúdios, como “The Importance of Being Earnest” (2002) ou “Shaun Of The Dead” (2004). Uma escola de cinema também se serve destes estúdios, a The Met Film School London.  A morada é: 31, Grange Road, Ealing, Londres.

Os principais filmes dos Ealing Studios: “Hue and Cry” (1947), “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), “The Titfield Thunderbolt” (1953), “The Cruel Sea” (1953), “The Ladykillers” (1955), “Barnacle Bill” (1956). 

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