OITO VIDAS POR UM TÍTULO (1949)
No
final da década de 40 e inícios da de 50 do século XX, um dos estúdios ingleses
mais célebres, o Ealing Studio, produziu um conjunto de comédias
verdadeiramente invulgar, pela qualidade do seu humor, pelas características
absolutamente britânicas desse humor, pela excelência da representação (onde
sobressaiu Alec Guiness, entre outros). Títulos como “Whisky Galore!” (1949),
“Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender
Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), ou “The Ladykillers”
(1955) são hoje em dia considerados clássicos indiscutíveis do chamado humor
inglês. “Oito Vidas por um Título”, “O Homem do Fato Claro” e “O Quinteto era
de Cordas”, sobretudo estes três títulos, são indiscutíveis referências desta
época do cinema britânico e, igualmente, do trabalho excepcional de um actor
que muitos consideram dos melhores de sempre em todo o mundo, Alec Guiness.
“Oito
Vidas por um Título” tem como título original “Kind Hearts and Coronets”, que é
uma citação ligeiramente alterada de um poema de um dos mais prestigiados
escritores ingleses, Alfred Lord Tennyson. O
poema, “Lady Clara Vere de Vere”, surgiu integrado no livro de 1842, “The Lady
of Shalott and Other Poems”, e podia ler-se assim: “Trust me, Clara Vere de
Vere, / From yon blue heavens above us bent / The gardener Adam and his wife /
Smile at the claims of long descent. / Howe’er it be, it seems to me, / ’Tis
only noble to be good. / Kind hearts are more than coronets, / And simple faith
than Norman blood.” O
título da obra de Robert Hamer filia-se, portanto, neste poema de meados do
século XIX, uma época vitoriana, onde os contrastes sociais eram imensos, a
hipocrisia e a violência constantes.
O filme
de Robert Hammer parte de um argumento escrito pelo próprio Robert Hamer, de
colaboração com John Dighto, segundo romance de Roy Horniman, “Israel Rank: The
Autobiography of a Criminal” (1907), que relatava a vida e as façanhas
criminosas de um judeu de ascendência italiana que confessara a autoria de
vários crimes cometidos ao longo da vida numa sistemática vingança. O romance
conheceu grande sucesso na época, pelo tom cínico e irónico com que relatava as
proezas amorais de um herói pouco provável.
O que
nos dá o filme: em 1868, na cela de uma prisão londrina, na véspera da sua
execução, Louis Mazzani (Dennis Price), duque de Ascoyne, escreve as memórias,
remontando a tempos passados quando a mãe se viu privada dos seus direitos de
nobreza, como represália familiar por ter casado com um “simples” cantor
italiano. Por causa disso, Louis Mazzani jura vingança e procura recuperar o
posto nobilitário perdido, para o que precisa de “anular” oito membros da
família Ascoyne. A narrativa é sóbria e delicada, contrastando em tudo com o
narrado: um a um os vários possíveis pretendentes à sucessão vão sendo
afastados do caminho, através de um pouco de veneno, um tiro de caçadeira, um
pequeno naufrágio, uma morte natural, um balão atravessado por uma seta, uma
explosão, uma colisão marítima, ou mesmo um apetitoso caviar… Há de tudo, um
banqueiro, um padre, um capitão da marinha, um militar, uma senhora sufragista,
um fotógrafo amador, e o mais espantoso é que os oito representantes da
dinastia Ascoyne são todos interpretados brilhantemente por um único actor,
Alec Guiness. De início, ele ia apenas interpretar quatro papéis, mas à medida
que foi interiorizando a família, acabou por a dominar por completo, com uma
mestria invulgar. Guiness era já um actor célebre, mas este filme encarregou-se
de projectar o seu talento, colocando-o entre os melhores actores do mundo.
Diga-se que o filme conta ainda com duas outras representações dignas de referência,
Dennis Price, no cínico e eficaz serial killer dos Ascoynes, e a belíssima Joan
Greenwood, na figura da jovem Sibella, uma notável presença, senhora de uma voz
absolutamente inesquecível.
Situando-se
num período vitoriano, com a burguesia em ascensão, que se estabelecia como
"middle class", limitada a norte pela "upper class",
constituída por uma aristocracia em decadência, mas ainda vigorosa e a ocupar
lentamente os lugares da alta finança e da governação, esta comédia de humor
negro, mas de delicado e elegante humor (o que o torna ainda mais negro), é um
retrato curioso dessa época. A família Ascoyne é um bom exemplo dessa
aristocracia que domina, mas que se autodestrói pela ganância e pelos jogos de
influência e de poder. Tudo com uma fleuma e uma discrição próprias da reserva
britânica, ou não fosse o “humor negro” uma das características mais constantes
da cultura inglesa.
Todos
estes pormenores são descritos por Louis Mazzani que os fixa numas “memórias”
que pretende deixar para a posteridade. Espera-o a forca, na manhã seguinte,
depois de ter sido acusado e sentenciado (injustamente, neste caso) pelo
assassinato de alguém que ele efectivamente não tinha morto. Quando o seu final
de aproxima, ocorre o imprevisto, e quando este o coloca à porta da cadeia, uma
nova reviravolta se anuncia. A ironia nunca se afasta desta obra que se torna
de tal forma incómoda que nos EUA foi censurada, tendo-lhe sido amputados cerca
de seis minutos e alterado o final (a ambiguidade do final inglês foi reduzida
a um final mais politicamente correcto).
Claro
que este filme, e seguramente a obra de Roy Horniman que lhe está na base,
devem muito a “O Assassinato Considerado como uma das Belas-Artes”, de Thomas
de Quincey, aparecido em livro em 1854, depois de ter surgido no “Blackwood's
Magazine” em 1827, depois em 1839, acompanhado de uma continuação, e finalmente
em volume, com um importante desenvolvimento dedicado aos crimes de John
Williams. Essa visão do assassinato como uma “arte”, mais precisamente uma das “Belas-Artes”,
reflecte esse humor muito próprio dos ingleses, e que este filme tão bem
exemplifica (tal como outras obras de autores tão diversos de Hitchcock aos
Monty Python). Diga-se, concluindo, que o título francês, “Noblesse Oblige”, se
sente muito mais apropriado do que o português “Oito Vidas por um Título”,
demasiado prosaico e pragmático para traduzir correctamente o espírito desta
comédia brilhante.
Não só
no plano do assassinato o filme se mostra um tanto ou quanto iconoclasta. Na
verdade, em 1949, o adultério não era actividade muito vista no cinema, e nunca
antes o fora mostrado numa das inúmeras películas produzidas pelos Ealing
Studio, então dirigidos por Michael Balcon. Foi, pois, com alvoroço que o
produtor viu o filme depois de rodado, descobrindo que Louis Mazzani, além de
assassino, era igualmente um obstinado adúltero que mantinha com Sibella uma
relação carnal (apenas sugerida no filme, mas sugerida de forma muito
persuasiva e intensa) para lá do casamento desta com um amigo. Balcon ainda
tentou remediar as coisas, mas Hamer era um realizador difícil de dobrar e
manteve o filme intocável nesse aspecto.
A
belíssima fotografia a preto e branco de Douglas Slocombe, a direcção artística
de William Kellner, e a área “Il mio Tesoro”, da ópera “Don Giovanni”, de
Mozart, são outros tantos motivos que levaram os inqueridos do British Film
Institute, em 1999, a colocar “Kind Hearts and Coronets” em sexto lugar, entre
os melhores filmes de sempre da cinematografia inglesa.
OITO VIDAS POR UM TÍTULO
Título original: Kind Hearts
and Coronets
Realização: Robert
Hamer (Inglaterra, 1949); Argumento: Robert Hamer, John Dighto, segundo romance
de Roy Horniman; Produção: Michael Balcon, Michael Relph; Música: Ernest
Irving; Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Peter Tanner; Direcção
artística: William Kellner; Guarda-roupa: Anthony Mendleson; Maquilhagem:
Barbara Barnard, Harry Frampton, Pearl Orton, Ernest Taylor; Direcção de
produção: Leigh Aman, Hal Mason; Assistente de realização: Norman Priggen, John
Hewlett, David W. Orton; Departamento de arte: Grace Bryan-Brown, Norman Dorme,
Roger Hopkin, Jack Shampan, V. Shaw, R. Thurgarland; Som: Stephen Dalby, John
W. Mitchell, Norman King; Efeitos especiais: Geoffrey Dickinson, Sydney
Pearson; Companhia de produção: Ealing Studios (An Ealing Studios Production); Intérpretes: Dennis Price (Louis),
Valerie Hobson (Edith), Joan Greenwood (Sibella), Alec Guinness (a familia
D'Ascoyne: o duque / o banqueiro / o padre / o general / o almiranto carrasco),
Clive Morton (Governador da prisão), John Penrose (Lionel), Cecil Ramage, Hugh
Griffith (Lord High Steward), John Salew (Mr. Perkins), Eric Messiter
(Burgoyne), Lyn Evans, Barbara Leake, Peggy Ann Clifford, Anne Valery, Arthur
Lowe, Stanley Beard, Maxwell Foster, Peter Gawthorne, Molly Hamley-Clifford,
Leslie Handford, Nicholas Hill, Fletcher Lightfoot, Cavan Malone, Laurence
Naismith, Gordon Phillott, Jeremy Spenser, Ivan Staff, Richard Wattis, Carol
White, Harold Young, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em
Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/12 anos; Data
de estreia em Portugal: 29 de Junho de 1950.
EALING STUDIOS
“Ealing
Studios” é uma produtora de filmes para cinema e de entretenimento diverso para
televisão. Tem uma longa história, sendo presentemente, o mais antigo estúdio
de cinema a operar no mundo. Nasceu em 1902, no local chamado Ealing Green, em
Londres Oeste. Will Barker fundou aí uma produtora chamada “White Lodge”. Em
1931, o produtor teatral Basil Dean, já no sonoro, funda nesse espaço a
Associated Talking Pictures, que se mantém em funcionamento até 1938, quando
entra em declínio. Michael Balcon, vindo da MGM, passa então a controlar os
destinos da produtora, insufla-lhe uma nova vida, com outros colaboradores e
actores, refrescando o ambiente, tornando-a numa casa produtora lendária,
sobretudo através das suas comédias, as “Ealing comedies”, que se instituíram
rapidamente clássicos, a partir do fim da II Guerra Mundial: “Kind Hearts and
Coronets” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951),
e “The Ladykillers” (1955). Os filmes da companhia passam então a ser
distribuídos sob a sigla da “Rank Organisation”.
Durante
este tempo, mas sobretudo nos anos 30 e 40, os Ealing Studios não só criam os
seus actores de comédia típicos, como Gracie Fields, George Formby, Stanley
Holloway ou Will Hay, mais tarde Alec Guiness, como se notalibilizam ainda por
outro tipo de filmes, como os documentários realistas durante a II Guerra
Mundial, com títulos que se recordam “Went the Day Well?” (1942), “The Foreman Went to France” (1942),
“Undercover” (1943), “San Demetrio London” (1943), entre outros. Ainda em 1945, produz um
thriller em episódios que deixou marca: “Dead of Night”.
Depois,
durante quarenta anos, a BBC, entre 1955 e 1995, alugou o espaço e rodou ainda
grande parte do seu material televisivo, telefilmes, séries, programas
diversos. Chegou a possuir nesse espaço mais de 50 salas de montagem. A partir
de 2000, a Ealing Studios passou sobretudo a casa distribuidora, mas algumas
obras foram ainda rodadas nesses estúdios, como “The Importance of Being
Earnest” (2002) ou “Shaun Of The Dead” (2004). Uma escola de cinema também se
serve destes estúdios, a The Met Film School London. A morada é: 31,
Grange Road, Ealing, Londres.
Os principais filmes dos Ealing
Studios: “Hue and Cry” (1947), “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico”
(1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The
Man in the White Suit” (1951), “The Titfield Thunderbolt” (1953), “The Cruel
Sea” (1953), “The Ladykillers” (1955), “Barnacle Bill” (1956).
Sem comentários:
Enviar um comentário