domingo, 29 de maio de 2016

SESSÃO 18 - 31 DE MAIO DE 2016



O BAILE DOS BOMBEIROS (1976)

Milos Forman foi, no período de ouro do cinema checo, aquele que alcançou maior repercussão nacional e internacional. Depois de passar pela curta metragem, estreou-se na longa com “O Ás de Espadas”, em 1964, onde começou a ser notado pela forma atenta e sensível como acompanhava vida de um jovem, oriundo de família humilde, mas tradicionalista e austera, que trabalha como vigilante num supermercado e persegue uma das mais bonitas alunas da escola. Depois, em 1965, continua a olhar para a juventude do seu país e, através dela, para toda a sociedade, através dos olhos de uma rapariga, com “Os Amores de Uma Loura”, onde encantos e desencantos da juventude mereceram a nomeação para o Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa. Nova nomeação em 1967, com “O Baile dos Bombeiros”, que merecerá comentário mais detalhado.
É normal em ditaduras os artistas não abordarem directamente os assuntos que pretendem debater e criticar e fazê-lo através de metáforas e sub-textos. Todos os cineastas checos dos anos 60 o fizeram, Milos Forman foi um dos mais cultivou a metáfora e “O Baile dos Bombeiros” é um bom exemplo deste processo, partindo de uma aparentemente inócua comédia sobre um baile de bombeiros para denunciar alguns dos aspectos mais negativos da sociedade checa desta época, onde imperava a burocracia, a falta de liberdade, os interesses criados, a corrupção, a hipocrisia, uma forma militarista de entender o exercício do poder, enfim, as características normalmente dominantes do despotismo.
É isso mesmo que se pode entender ao ver ainda hoje esta comédia deliciosamente amarga, sobre uma noite de baile organizada por uma corporação de bombeiros. A banda sonora, que é conduzida quase sempre em tom de marcha militar, arranca logo desde o genérico marcando o ritmo de toda a obra. A sequência inicial mostra a comissão organizadora do baile a discutir sobre a entrega de um machado de ouro ao antigo chefe de bombeiros como lembrança pelos seus muitos anos à frente da colectividade. Um lamenta não ter sido efectuada a homenagem “no ano passado, quando ele cumpria 85 anos de vida, e antes de se saber que tinha um cancro.” Agora, pode parecer que lhe estão a ofertar o machado por causa do cancro. “Mas ninguém lhe disse que tinha um cancro”, afiança um. Nem os médicos. “Nem que tenha o pior cancro do mundo, nenhum médico lhe iria dizer!” O que define desde logo a atmosfera social, onde impera o segredo, a dissimulação e a duplicidade. Alguém vela pelos outros. Pelo que devem e não devem saber. 


Enquanto se ultimam os preparativos na sala onde irá decorrer o baile, a um canto encontra-se o altar onde se colocaram as ofertas que irão ser sorteadas numa tômbola. Mas começam a desaparecer os prémios. Para já não se encontra a cabeça de porco que estava ali ainda há pouco. Mas uma desgraça nunca vem só, como se irá perceber ao longo do filme.
Começado o baile, a Comissão Organizadora olha atentamente para uma fotografia em página dupla de uma revista onde se vêem as muitas misses que concorreram a um concurso internacional. À sua medida, eles também terão as suas misses. “No mínimo oito”, concordam. E partem para a sala de baile à procura de raparigas que preencham os requisitos para entrarem na competição. No caos de uma sala onde se amontoam dezenas e dezenas de pares, os membros da Comissão percorrem rostos, mas sobretudo pernas e bustos, não esquecendo os traseiros. Sobem mesmo ao primeiro andar para terem uma melhor perspectiva, do alto, sobre os decotes. Sem grandes resultados. As mais bonitas não querem ser escolhidas, as outras não querem eles escolher, mas têm de o fazer quando a mulher de um dos membros da Comissão grita para o marido, aponta esta, ou o velho companheiro impõe a filha que “sai a ele”.  Entretanto desaparece o bolo de chocolate e a garrafa de whisky.
Ao fim de muito esforço, as candidatas “escolhidas” são encurraladas na sala da direcção para lhes ser ministrado treino militar ou como desfilar numa passerelle, “esquerdo, direito, um, dois, esquerdo, direito.” A mãe de uma das candidatas condu-la pela mão e fica encostada a um canto para ter a certeza de que “tudo é correcto e honesto”.  Uma das candidatas chega tarde à chamada, porque resolveu ir a casa vestir o biquíni e quer despir-se na frente de todos. A mãe da outra rapariga é convidada a ir dançar, para a sala ficar mais intimista. Ensaiam-se poses, desfiles, mas é tudo imposto, nada é feito de livre vontade. Nem numa festa, a liberdade é garantida. Há que comportar-se segundo os preceitos dos que mandam, dos que detêm o poder. Nada mais óbvio.


Partem a toque de caixa para o salão de Baile, a Comissão sobe ao palco e espera que as candidatas façam o mesmo. Mas estas desaparecem, escondem-se, resistem como podem. Inicia-se a caçada à concorrente que é levada à força para o cimo do palco. Sempre que alguém assume pose de discurso no palco, o velho dirigente que espera ser chamado para a entrega do “machado de ouro”, atravessa a sala em passe garboso julgando ter chegado a sua vez. E invariavelmente devolvido ao seu lugar. Entretanto, vão desaparecendo mais e mais prémios da tômbola, alguns deles embalados pelos arrufos de um par de namorados que se escondeu debaixo da mesa à procura das contas de um colar que rebentou.
Na confusão geral alguém pede silêncio. Lá fora ouve-se a sirene dos bombeiros, chamando para um fogo na aldeia. Uma casinhota arde, deixando sem nada um pobre velho que olha para as cinzas desesperado. Populares e bombeiros acorrem. Gera-se um momento de solidariedade espontânea, mas também o aproveitamento dos oportunistas que não perdem uma chance de fazer negócio. O proprietário do restaurante onde decorre o baile, traz garrafas de cerveja e inicia o negócio das bebidas que prospera. Mas, apagado o fogo, quando regressam ao baile, a surpresa é geral. Todos oferecem os seus bilhetes da tômbola para entregar ao velho que ficou sem nada, mas a verdade é que não há nada no balcão dos prémios. A Comissão lamenta o sucedido e dá uma oportunidade. Apagam-se as luzes e quem roubou recoloca o furto no lugar devido. Quando a luz se volta a acender, mesmo os dois ou três prémios insignificantes que ainda lá se encontravam desapareceram. Nova tentativa, e quem é apanhado com a boca na botija, ou com a cabeça de porco na mão, é um dos poucos honestos da noite que tenta emendar o furto da mulher: “Todos roubam, e só me vês a mim? Por que hás-de ser tu o único a ser honesto?”, grita-lhe a mulher.
A lição está bem sabida. Há palavras que não se conseguem proferir. “Solidariedade”, o idiota nunca vai dizer “Solidariedade”, ri-se um grupo de jovens, perante a dificuldade do orador que não se recorda da palavra (nem do conceito).
E tudo termina com uma moral amarga: “Quem não roubou, é como se não lhe tivesse saído nada.” Há mesmo quem desista de explicar o sucedido: “As pessoas sabem como é, não é preciso explicar nada.” Prática corrente, esta do roubo. E chega a homenagem, numa sala deserta, onde só ficou o velho dirigente dos bombeiros, que recebe das mãos da Comissão Organizadora uma caixa e um discurso pomposo. O velho agradece, abre a caixa, olha e volta a fechar. Na neve, uma cama isolada, no meio de vários “salvados” do incêndio. Amanhece e dois velhotes dormem, costas contra costas, envolvidos num edredão.
Totalmente interpretado por actores não profissionais, dirigidos com notável argúcia e delicadeza, um sentido apurado de observação de pequenos apontamentos humanos pitorescos e coloridos, rostos populares, inesquecíveis de verdade, uma crítica perspicaz mas humanista, compreensiva das fraquezas dos frágeis e não tanto das dos poderosos, uma câmara que evolui com sagacidade no interior caótico de uma sala de baile, uma fotografia que capta a cor do essencial e uma partitura musical envolvente, uma montagem que deixa a imagem correr, sem sobressaltos, e parece ser esta a fórmula encontrada para esta comédia de (maus) costumes que Milos Forman assina e que o levaria da Checoslováquia a Hollywood, onde se comprovou vir a ser um dos grandes cineastas da segunda década do século XX.


O BAILE DOS BOMBEIROS
Título original: Horí, má panenko ou The Firemen's Ball (em inglês)
Realização: Milos Forman (Checoslováquia, Itália, 1967); Argumento: Milos Forman, Jaroslav Papousek, Ivan Passer, Václav Sasek; Produção: Rudolf Hájek, Carlo Ponti; Música: Karel Mares; Fotografia (cor): Miroslav Ondrícek; Montagem: Miroslav Hájek; Design de produção: Karel Cerný; Direcção artística: Karel Cerný; Decoração: Vladimir Macha; Guarda-roupa: Zdena Snajdarová; Maquilhagem: Rudolf Hammer; Direcção de Produção: Jaroslav Solnicka; Assistentes de realização: Jaroslav Papousek; Som: Adolf Böhm; Companhias de produção: Carlo Ponti Cinematográfica, Filmové Studio Barrandov; Intérpretes: Jan Vostrcil (Chefe do comité), Josef Sebánek, Josef Valnoha, Frantisek Debelka, Vratislav Cermák, Josef Rehorek, Václav Novotný, Frantisek Reinstein,  Frantisek Paska, Ladislav Adam (Membros do comité), Josef Kolb (Josef), Jan Stöckl (chefe de bombeiros retirado), Stanislav Holubec (Karel), Josef Kutálek (Ludva), Frantisek Svet (velho), Jirí Líbal, Antonín Blazejovský, Stanislav Ditrich, Milada Jezková, Jarmila Kucharová, Alena Kvetová, Anna Liepoldová, Miluse Zelená, Marie Slivova, Hana Hanusová, Hana Kuberová, Karel Valnoha, Vlastimila Vlková, etc. Duração: 71 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Agosto de 1972.


O HUMOR A LESTE E MILOŠ FORMAN (1932 - )
Muito influenciadas pelo aparecimento da “nouvelle vague”, as cinematografias de Leste europeu, desde a própria URSS até à Hungria, Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia, entre outras, viram surgir gerações de novos cineastas que renovaram o cinema tradicionalista desses países e lhe introduziram tonalidades de humor até aí desconhecidas. Na Polónia pode citar-se o caso de Roman Polanski, na Checoslováquia os de Milos Forman ou Vera Chytilová, na Hungria, Károly Makk entre outros. Imprimiram uma maior liberdade de tratamento a certos temas e criaram estilos desenvoltos que permitiu um humor discreto mas, por vezes, corrosivo.
Jan Tomáš Forman, mais conhecido como Miloš Forman, nasceu em Čáslav, na Checoslováquia, a 18 de Fevereiro de 1932. Os pais morreram no campo de concentração nazi de Auschwitz, deixando Jan Thomas órfão muito novo. Realizador, actor, argumentista, formou-se na Escola de Cinema de Praga, começando a carreira como assistente de realização e argumentista, autor de duas curtas-metragens, uma delas, Konkurs (1963), que lhe abriu caminho para a primeira longa-metragem, “Cerny Petr” (1963), que, conjuntamente com “Lásky Jedné Plavovásky” (1965) e “Horí, má panenko” (1967), lhe trouxe prestígio internacional. Em 1969, depois do falhanço da “Primavera de Praga” e da ocupação da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, exilou-se nos EUA, regressando ao cinema com “Taking Off” (1971). Teve o seu primeiro Oscar como realizador com “One Flew over the Cuckoo's Nest” (1975) e dirigiu depois vários sucessos, como “Hair” (1979), “Ragtime” (1981), “Amadeus” (1984), sobre a vida de Wolfgang Amadeus Mozart, filme que recolheria oito Oscars e que lhe daria sua segunda estatueta da Academia, “Valmont” (1989), “The People vs. Larry Flynt” (1996) ou “Man on the Moon” (1999). Foi casado com Jana Brejchová (1951-1956) de quem se divorciou e juntou-se com Vera Kresadlová (1964-1999). Tornou-se cidadão norte-americano em 1975, e casou-se com a terceira mulher (1999), Martina Zborilova, sua assistente em “The People vs. Larry Flynt” (1996). Presentemente é director da divisão de cinema da Universidade de Columbia.


Filmografia / como realizador: 1960: Lanterna magika II; 1963: Konkurs; Kdyby ty muziky nebyly; Cerný Petr (O Ás de Espadas); 1965: Lasky Jedne Plavovlásky (Os Amores de uma Loira); 1966: Dobre placená procházka (TV); 1967: Horí, má Panenko (O Baile dos Bombeiros); 1971: I Miss Sonia Henie; 1971: Taking Off (Os Amores de uma Adolescente); 1973: Visions of eight (Visões dos Oito) (episódio “The Decathlon”) (Doc.); 1975: One Flew Over the Cuckoo's Nest (Voando sobre um Ninho de Cucos); 1979: Hair (Hair); 1981: Ragtime (Ragtime); 1984: Amadeus (Amadeus); 1989: Valmont (Valmont); 1996: The People vs. Larry Flynt (Larry Flynt); 1999: Man on the Moon (Homem na Lua); 2006: Goya's Ghosts (Os Fantasmas de Goya); 2007: Semafor: Nejvetsí hity 2; 2009: Dobre placená procházka.

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