O BAILE DOS BOMBEIROS (1976)
Milos Forman
foi, no período de ouro do cinema checo, aquele que alcançou maior repercussão
nacional e internacional. Depois de passar pela curta metragem, estreou-se na
longa com “O Ás de Espadas”, em 1964, onde começou a ser notado pela forma
atenta e sensível como acompanhava vida de um jovem, oriundo de família
humilde, mas tradicionalista e austera, que trabalha como vigilante num
supermercado e persegue uma das mais bonitas alunas da escola. Depois, em 1965,
continua a olhar para a juventude do seu país e, através dela, para toda a
sociedade, através dos olhos de uma rapariga, com “Os Amores de Uma Loura”, onde
encantos e desencantos da juventude mereceram a nomeação para o Oscar de Melhor
Filme em Língua não Inglesa. Nova nomeação em 1967, com “O Baile dos Bombeiros”,
que merecerá comentário mais detalhado.
É normal em
ditaduras os artistas não abordarem directamente os assuntos que pretendem
debater e criticar e fazê-lo através de metáforas e sub-textos. Todos os cineastas
checos dos anos 60 o fizeram, Milos Forman foi um dos mais cultivou a metáfora
e “O Baile dos Bombeiros” é um bom exemplo deste processo, partindo de uma
aparentemente inócua comédia sobre um baile de bombeiros para denunciar alguns
dos aspectos mais negativos da sociedade checa desta época, onde imperava a
burocracia, a falta de liberdade, os interesses criados, a corrupção, a
hipocrisia, uma forma militarista de entender o exercício do poder, enfim, as
características normalmente dominantes do despotismo.
É isso mesmo que
se pode entender ao ver ainda hoje esta comédia deliciosamente amarga, sobre
uma noite de baile organizada por uma corporação de bombeiros. A banda sonora,
que é conduzida quase sempre em tom de marcha militar, arranca logo desde o
genérico marcando o ritmo de toda a obra. A sequência inicial mostra a comissão
organizadora do baile a discutir sobre a entrega de um machado de ouro ao
antigo chefe de bombeiros como lembrança pelos seus muitos anos à frente da
colectividade. Um lamenta não ter sido efectuada a homenagem “no ano passado,
quando ele cumpria 85 anos de vida, e antes de se saber que tinha um cancro.”
Agora, pode parecer que lhe estão a ofertar o machado por causa do cancro. “Mas
ninguém lhe disse que tinha um cancro”, afiança um. Nem os médicos. “Nem que
tenha o pior cancro do mundo, nenhum médico lhe iria dizer!” O que define desde
logo a atmosfera social, onde impera o segredo, a dissimulação e a duplicidade.
Alguém vela pelos outros. Pelo que devem e não devem saber.
Enquanto se
ultimam os preparativos na sala onde irá decorrer o baile, a um canto
encontra-se o altar onde se colocaram as ofertas que irão ser sorteadas numa
tômbola. Mas começam a desaparecer os prémios. Para já não se encontra a cabeça
de porco que estava ali ainda há pouco. Mas uma desgraça nunca vem só, como se
irá perceber ao longo do filme.
Começado o
baile, a Comissão Organizadora olha atentamente para uma fotografia em página
dupla de uma revista onde se vêem as muitas misses que concorreram a um concurso
internacional. À sua medida, eles também terão as suas misses. “No mínimo
oito”, concordam. E partem para a sala de baile à procura de raparigas que
preencham os requisitos para entrarem na competição. No caos de uma sala onde
se amontoam dezenas e dezenas de pares, os membros da Comissão percorrem
rostos, mas sobretudo pernas e bustos, não esquecendo os traseiros. Sobem mesmo
ao primeiro andar para terem uma melhor perspectiva, do alto, sobre os decotes.
Sem grandes resultados. As mais bonitas não querem ser escolhidas, as outras
não querem eles escolher, mas têm de o fazer quando a mulher de um dos membros
da Comissão grita para o marido, aponta esta, ou o velho companheiro impõe a
filha que “sai a ele”. Entretanto
desaparece o bolo de chocolate e a garrafa de whisky.
Ao fim de muito
esforço, as candidatas “escolhidas” são encurraladas na sala da direcção para
lhes ser ministrado treino militar ou como desfilar numa passerelle, “esquerdo,
direito, um, dois, esquerdo, direito.” A mãe de uma das candidatas condu-la
pela mão e fica encostada a um canto para ter a certeza de que “tudo é correcto
e honesto”. Uma das candidatas chega
tarde à chamada, porque resolveu ir a casa vestir o biquíni e quer despir-se na
frente de todos. A mãe da outra rapariga é convidada a ir dançar, para a sala
ficar mais intimista. Ensaiam-se poses, desfiles, mas é tudo imposto, nada é
feito de livre vontade. Nem numa festa, a liberdade é garantida. Há que
comportar-se segundo os preceitos dos que mandam, dos que detêm o poder. Nada
mais óbvio.
Partem a toque
de caixa para o salão de Baile, a Comissão sobe ao palco e espera que as
candidatas façam o mesmo. Mas estas desaparecem, escondem-se, resistem como
podem. Inicia-se a caçada à concorrente que é levada à força para o cimo do palco.
Sempre que alguém assume pose de discurso no palco, o velho dirigente que
espera ser chamado para a entrega do “machado de ouro”, atravessa a sala em
passe garboso julgando ter chegado a sua vez. E invariavelmente devolvido ao
seu lugar. Entretanto, vão desaparecendo mais e mais prémios da tômbola, alguns
deles embalados pelos arrufos de um par de namorados que se escondeu debaixo da
mesa à procura das contas de um colar que rebentou.
Na confusão
geral alguém pede silêncio. Lá fora ouve-se a sirene dos bombeiros, chamando
para um fogo na aldeia. Uma casinhota arde, deixando sem nada um pobre velho
que olha para as cinzas desesperado. Populares e bombeiros acorrem. Gera-se um
momento de solidariedade espontânea, mas também o aproveitamento dos oportunistas
que não perdem uma chance de fazer negócio. O proprietário do restaurante onde
decorre o baile, traz garrafas de cerveja e inicia o negócio das bebidas que prospera.
Mas, apagado o fogo, quando regressam ao baile, a surpresa é geral. Todos
oferecem os seus bilhetes da tômbola para entregar ao velho que ficou sem nada,
mas a verdade é que não há nada no balcão dos prémios. A Comissão lamenta o
sucedido e dá uma oportunidade. Apagam-se as luzes e quem roubou recoloca o
furto no lugar devido. Quando a luz se volta a acender, mesmo os dois ou três
prémios insignificantes que ainda lá se encontravam desapareceram. Nova
tentativa, e quem é apanhado com a boca na botija, ou com a cabeça de porco na
mão, é um dos poucos honestos da noite que tenta emendar o furto da mulher:
“Todos roubam, e só me vês a mim? Por que hás-de ser tu o único a ser
honesto?”, grita-lhe a mulher.
A lição está bem
sabida. Há palavras que não se conseguem proferir. “Solidariedade”, o idiota
nunca vai dizer “Solidariedade”, ri-se um grupo de jovens, perante a
dificuldade do orador que não se recorda da palavra (nem do conceito).
E tudo termina
com uma moral amarga: “Quem não roubou, é como se não lhe tivesse saído nada.”
Há mesmo quem desista de explicar o sucedido: “As pessoas sabem como é, não é
preciso explicar nada.” Prática corrente, esta do roubo. E chega a homenagem,
numa sala deserta, onde só ficou o velho dirigente dos bombeiros, que recebe
das mãos da Comissão Organizadora uma caixa e um discurso pomposo. O velho
agradece, abre a caixa, olha e volta a fechar. Na neve, uma cama isolada, no
meio de vários “salvados” do incêndio. Amanhece e dois velhotes dormem, costas
contra costas, envolvidos num edredão.
Totalmente
interpretado por actores não profissionais, dirigidos com notável argúcia e
delicadeza, um sentido apurado de observação de pequenos apontamentos humanos
pitorescos e coloridos, rostos populares, inesquecíveis de verdade, uma crítica
perspicaz mas humanista, compreensiva das fraquezas dos frágeis e não tanto das
dos poderosos, uma câmara que evolui com sagacidade no interior caótico de uma
sala de baile, uma fotografia que capta a cor do essencial e uma partitura
musical envolvente, uma montagem que deixa a imagem correr, sem sobressaltos, e
parece ser esta a fórmula encontrada para esta comédia de (maus) costumes que
Milos Forman assina e que o levaria da Checoslováquia a Hollywood, onde se
comprovou vir a ser um dos grandes cineastas da segunda década do século XX.
O BAILE DOS BOMBEIROS
Título
original: Horí,
má panenko ou The Firemen's Ball (em inglês)
Realização: Milos Forman (Checoslováquia, Itália,
1967); Argumento: Milos Forman, Jaroslav Papousek, Ivan Passer, Václav Sasek;
Produção: Rudolf Hájek, Carlo Ponti; Música: Karel Mares; Fotografia (cor):
Miroslav Ondrícek; Montagem: Miroslav Hájek; Design de produção: Karel Cerný;
Direcção artística: Karel Cerný; Decoração: Vladimir Macha; Guarda-roupa: Zdena
Snajdarová; Maquilhagem: Rudolf Hammer; Direcção de Produção: Jaroslav
Solnicka; Assistentes de realização: Jaroslav Papousek; Som: Adolf Böhm;
Companhias de produção: Carlo Ponti Cinematográfica, Filmové Studio Barrandov; Intérpretes: Jan Vostrcil (Chefe do
comité), Josef Sebánek, Josef Valnoha, Frantisek Debelka, Vratislav Cermák,
Josef Rehorek, Václav Novotný, Frantisek Reinstein, Frantisek Paska, Ladislav Adam (Membros do
comité), Josef Kolb (Josef), Jan Stöckl (chefe de bombeiros retirado),
Stanislav Holubec (Karel), Josef Kutálek (Ludva), Frantisek Svet (velho), Jirí
Líbal, Antonín Blazejovský, Stanislav Ditrich, Milada Jezková, Jarmila
Kucharová, Alena Kvetová, Anna Liepoldová, Miluse Zelená, Marie Slivova, Hana
Hanusová, Hana Kuberová, Karel Valnoha, Vlastimila Vlková, etc. Duração: 71 minutos; Distribuição em
Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de
estreia em Portugal: 24 de Agosto de 1972.
O HUMOR A LESTE E MILOŠ
FORMAN (1932 - )
Muito influenciadas pelo aparecimento da “nouvelle vague”, as
cinematografias de Leste europeu, desde a própria URSS até à Hungria, Polónia,
Checoslováquia, Jugoslávia, entre outras, viram surgir gerações de novos
cineastas que renovaram o cinema tradicionalista desses países e lhe
introduziram tonalidades de humor até aí desconhecidas. Na Polónia pode
citar-se o caso de Roman Polanski, na Checoslováquia os de Milos Forman ou Vera
Chytilová, na Hungria, Károly Makk entre outros. Imprimiram uma maior liberdade
de tratamento a certos temas e criaram estilos desenvoltos que permitiu um
humor discreto mas, por vezes, corrosivo.
Jan Tomáš Forman, mais conhecido como Miloš Forman, nasceu em Čáslav, na
Checoslováquia, a 18 de Fevereiro de 1932. Os pais morreram no campo de
concentração nazi de Auschwitz, deixando Jan Thomas órfão muito novo.
Realizador, actor, argumentista, formou-se na Escola de Cinema de Praga,
começando a carreira como assistente de realização e argumentista, autor de
duas curtas-metragens, uma delas, Konkurs (1963), que lhe abriu caminho para a
primeira longa-metragem, “Cerny Petr” (1963), que, conjuntamente com “Lásky
Jedné Plavovásky” (1965) e “Horí, má panenko” (1967), lhe trouxe prestígio
internacional. Em 1969, depois do falhanço da “Primavera de Praga” e da
ocupação da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, exilou-se nos EUA,
regressando ao cinema com “Taking Off” (1971). Teve o seu primeiro Oscar como
realizador com “One Flew over the Cuckoo's Nest” (1975) e dirigiu depois vários
sucessos, como “Hair” (1979), “Ragtime” (1981), “Amadeus” (1984), sobre a vida
de Wolfgang Amadeus Mozart, filme que recolheria oito Oscars e que lhe daria
sua segunda estatueta da Academia, “Valmont” (1989), “The People vs. Larry
Flynt” (1996) ou “Man on the Moon” (1999). Foi casado com Jana Brejchová
(1951-1956) de quem se divorciou e juntou-se com Vera Kresadlová (1964-1999).
Tornou-se cidadão norte-americano em 1975, e casou-se com a terceira mulher
(1999), Martina Zborilova, sua assistente em “The People vs. Larry Flynt”
(1996). Presentemente é director da divisão de cinema da Universidade de
Columbia.
Filmografia / como realizador: 1960: Lanterna
magika II; 1963: Konkurs; Kdyby ty muziky nebyly; Cerný Petr (O Ás de Espadas);
1965: Lasky Jedne Plavovlásky (Os Amores de uma Loira); 1966: Dobre placená
procházka (TV); 1967: Horí, má Panenko (O Baile dos Bombeiros); 1971: I Miss
Sonia Henie; 1971: Taking Off (Os Amores de uma Adolescente); 1973: Visions of
eight (Visões dos Oito) (episódio “The Decathlon”) (Doc.); 1975: One Flew Over
the Cuckoo's Nest (Voando sobre um Ninho de Cucos); 1979: Hair (Hair); 1981:
Ragtime (Ragtime); 1984: Amadeus (Amadeus); 1989: Valmont (Valmont); 1996: The People vs.
Larry Flynt (Larry Flynt); 1999: Man on the Moon (Homem na Lua); 2006: Goya's Ghosts (Os Fantasmas de Goya); 2007: Semafor: Nejvetsí hity 2; 2009: Dobre placená procházka.
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