Artur Semedo era conhecido sobretudo
como actor, ainda que tivesse dirigido várias longas-metragens no cinema e na
televisão, anteriores a “O Querido Lilás”.
A primeira havia sido uma incursão dramática, populista, na linha de
“Vidas sem Rumo”, de Manuel Guimarães: “O Dinheiro
dos Pobres” (1935). Depois, e falando
somente de cinema, regressara em 1973, com uma comédia descosida e estovada,
com Angola por cenário (“Burgueses, Malteses e às Vezes”), que nunca conseguia
impôr a toada anarquizante pretendida. Para a televisão, Artur Semedo vai,
entretanto, dirigindo vários trabalhos, entre os quais “A Casa de Orates”
(1972), “Alves e C.a” (1974) ou “Sua Excelência, o Ministro” (1975). “O Rei das
Berlengas”, depois de longos anos de divórcio, voltaria para, quem sabe?, a
estabelecer uma ponte entre o público nacional e o seu cinema. Produto de uma
imaginação transbordante, de um agudo poder satírico, mas de reduzida
capacidade, de auto-análise, contensão e esforço de rigor, “O Rei das Berlengas
ou a Independência das Ditas” vive num amontoado de situações de um humor
absurdo, onde, lado a lado, coabitam D. Afonso Henriques, Asterix e Obelix, num
encadeado de referências de uma aparente falta de lógica que, no entanto, não
nos pedem uma interpretação pontual, mas global. Ou seja: não interessa tanto
ter uma “leitura”, a par e passo, da obra, mas sim ir recolhendo informes e
impressões que, no final, nos oferecerão uma visão do mundo, num tom de humor,
um estilo de crítica. Neste aspecto “O Rei das Berlengas” percorre o caminho já
iniciado em “Burgueses, Malteses e às Vezes”, situando-se, todavia, muitos
pontos acima daquela outra película. O cinema de Artur Semedo continuaria
depois com dois outros êxitos relativos: “O Barão de Altamira” (1985) e,
sobretudo, “O Querido Lilás” (1987), este último com o reforço de Herman José,
um actor que se colora visivelmente na linha dos mais populares cómicos
portugueses de sempre.
Em 1985 surge, portanto, “O Barão de
Altamira”, divertida e caótica paródia ao caso de Olivença. A comédia tem o tom
delirante de sempre em Artur Semedo, que assina mais algumas cenas de
irresistível comicidade, mas que volta a denunciar um certo desequilíbrio
global de que se ressente o produto final. E, todavia, uma etapa mais no caminho
da comédia portuguesa e nada nos dizia que Semedo não sseria capaz de dirigir,
mais ano, menos ano, mais título, menos título, a grande comédia que os
portugueses de mereciam. Esteve quase a consegui-lo, talvez, em “O Querido
Lilás”, em colaboração com Herman José.
Não será uma obra-prima, anda mesmo
longe disso, nem Artur Semedo ou Herman José pensam certamente tê-lo
conseguido. O que tudo indica é que os responsáveis procuraram criar uma
comédia que ressuscitasse um pouco do velho espírito e alguns dos mecanismos
das antigas comédias portuguesas, fazendo, com uma razoável inteligência,
alguma habilidade na construção do argumento e uma certa agilidade de estilo,
repousando o todo na personalidade e no talento daquele que será, presentemente,
um dos nossos mais populares e queridos actores. Por isso, muito do sucesso ou
do insucesso de “O Querido Lilás” ficaria a dever-se a Herman José.
Cremos que Herman José salva mais do que
enterra este “Querido Lilás”, onde conta com o desempenho de duas personagens, o
que o obriga a estar quase sempre em cena, mas nem sempre dirigido com o rigor
que se imporia, apesar de irresistível de comicidade.
A história fala-nos de Beladona, a maior
actriz do teatro português, que um dia dá à luz uma criança, sendo o marido
impotente. A criança é, pois, “filha de ninguém” e, sendo a mãe “a maior” no
desempenho do “Frei Luís de Sousa”, é óbvio que “Ninguém” será o filho. Ou
melhor: “O Querido Lilás”, filho de pai incógnito, amamentado por uma falsa mãe
que sempre lhe ocultou ser ele “um filho da mãe” e da arte de Talma. Quando
cresce, o Querido Lilás apaixona-se pela Beladona, numa altura em que esta
representa, no cinema “A Tragédia da Rua das Flores”, ficção queirosiana que,
como é do conhecimento público, aborda um caso de incesto.
Incesto será também o caso de “O Querido
Lilás”, se não fosse também um caso de evidente narcisismo, dado que Lilás e
Beladona são duas figuras criadas pelo mesmo actor: Herman José. A história é,
por conseguinte, um mero pretexto para exibição dos magníficos dotes de um
actor. Herman José inspira-se livremente na “Miss Piggy”, dos Marretas, para
compor a figura da exuberante Beladona e reprime-se o mais que pode para criar
a personagem do Querido Lilás. Os diálogos são por vezes extremamente
divertidos, com alguns achados e trocadilhos bem na linha da comédia
tradicional portuguesa, mas a realização de Artur Semedo, que assina aqui
talvez o seu melhor trabalho, aparece ainda um pouco espartilhada e, sobretudo,
totalmente submetida ao trabalho do actor. O que, se representa por um lado uma
opção de base, respeitável até, por outro deixa-nos a sensação de que poderia
ter sido muito mais ágil e essencialmente mais rigorosa no aproveitamento desse
trabalho. E uma característica de Artur Semedo sobrecarregar as suas comédias
de “gags” que, funcionando uns e outros não, uns aos outros quase se anulam. Em
“O Querido Lilás” surge-nos algo mais comedido, mas mesmo assim poderia ter
imposto um pouco mais de disciplina recusando a repetição de alguns “gags” que
Herman José continuamente vai improvisando, que resultam em pleno à primeira,
que têm menos graça à segunda e que começam a cansar à terceira.
Dito isto, e colocando o filme nos seus
devidos propósitos, o de um divertimento popular, sem outras ambições do que
isso mesmo, “O Querido Lilás” é uma comédia com bons momentos e situações
divertidíssimas, servida por um actor brilhante (ainda que aqui e ali
excessivo), bem acompanhado por um elenco certo. A fotografia é correcta, o som
bastante razoável, tendo em conta sobretudo a dificuldade de captar a torrente
de palavras de Herman José, nomeadamente, quando Beladona.
Finalmente, um filme como este coloca um
problema interessante no interior da nossa cinematografia, demonstrando que um
cinema popular, sem grandes preocupações estéticas, é indispensável e cativa
obrigatoriamente muitos espectadores. Desde que impere a inteligência, um certo
bom gosto, alguma intencionalidade crítica. Isso mesmo aconteceu com esta
película de Artur Semedo, o que sobremaneira nos agrada. Pelo cinema português,
por Artur Semedo e pela sua incansável dedicação, por Herman José e pelo seu
desopilante humor.
(Aproveitamento de excertos de um texto
aparecido no opúsculo “A Comédia Popular Portuguesa, de António Silva a Herman
José”, edição do Festival Internacional de Cinema de Portalegre, 1988).
O QUERIDO LILÁS
Título original: O Querido
Lilás
Realização: Artur Semedo (Portugal, 1987);
Argumento: Herman José, João Lopes, Artur Semedo; Produção: Benjamim Falcão,
Artur Semedo; Música: Pedro Correia Martins; Fotografia (cor): Mário de
Carvalho; Montagem: Pedro Pinheiro; Maquilhagem: Ana Escada; Direcção de Produção:
Benjamim Falcão; Som: Carlos Alberto Lopes, Waldemar Miranda; Companhias de
produção: Doperfilme; Radiotelevisão Portuguesa (RTP); Intérpretes: Herman José (Lilás /Beladona), Rita Ribeiro (Madalena
Fadista), Artur Semedo (Sertório), Lina Morgado, Fernanda Borsatti, Henrique
Viana, Victor de Sousa, Natalina José; Filipe Ferrer, Couto Viana, Rui Luís,
Benjamim Falcão, Baptista Fernandes, Graça Braz, Jorge Listopad, Durval Lucena,
Ângela Pinto, etc. Duração: 90
minutos; Distribuição em Portugal: Doperfilmes; Classificação etária: M/ 12
anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Novembro de 1987.
HERMAN JOSÉ (1954 - )
Herman
José, cujo nome de baptismo é Hermann Josëph von Krippahl, nasceu em Lisboa, a
19 de Março de 1954, filho de pai com nacionalidade alemã e espanhola, Hermann
Ludwing von Krippahl (nascido 31 de julho em 1920) e de mãe portuguesa, Maria
Odette Antunes Valadas (nascida em 15 de novembro de 1932). Estudou na Escola
Alemã de Lisboa (Deutsche Schule Lissabon) e fla fluentemente português, alemão,
inglês, francês e espanhol. Possui a Comenda da Ordem do Mérito, atribuída a 10
de junho de 1992. É justamente considerado o mais influente humorista da
actualidade em Portugal, tendo influenciado directa ou indirectamente gerações
de novos talentos. Foi através da música que entrou na actividade artística.
Ainda estudante comprou, na adolescência, a sua primeira viola-baixo, uma
Höfner em segunda mão, numa loja de penhores da Avenida de Roma e que custou
mil escudos. Por volta dos 18 anos de idade tem as primeiras aparições na
televisão, num programa juvenil, onde integra um trio chamado “Soft”. Em finais
de 1973 é convidado a integrar o grupo “In-Clave”, banda residente do programa
de televisão “No Tempo Em Que Você Nasceu” (estreado a 27 de janeiro de 1974),
gravado no Teatro Maria Matos, e dirigida pelo maestro Pedro Osório. Em 1972, a
PIDE fizera-lhe um ultimato: ou se naturalizava português e cumpria o serviço
militar, ou escolhia a cidadania alemã e seria expulso do País. Herman José
optou pela nacionalidade alemã e inscreveu-se na Escola Superior de Televisão e
Cinema (Hochschule für Film und Bild), em Munique, que nunca chegaria a
frequentar. Com o 25 de Abril de 1974, acaba por permanecer em Portugal e, em
Outubro desse ano, estreia-se como ator no Teatro ABC, com a revista “Uma no
Cravo, Outra na Ditadura”. Pouco depois Nicolau Breyner leva-o a estrear-se
como ator na televisão, em 1975, nas rábulas “Sr. Feliz e Sr. Contente”,
inserida no programa “Nicolau no País das Maravilhas”. Entretanto, na música começa a somar êxitos,
como “Saca o Saca-Rolhas” ou “A Canção do Beijinho” criando a personagem Tony
Silva («O "criador" de toda música Ró”), outro grande sucesso. Em
1983 lança o primeiro programa de humor, “O Tal Canal”, a que se segue “Hermanias”
(1984), “Humor de Perdição” (1987), Nesse mesmo ano surge no cinema, em “O
Querido Lilás”, de Artur Semedo, e estreia-se em crónicas diárias na TSF.
Regressa à televisão em 1990, com “Casino Royal”, e passa a apresentar
concursos como “Com a Verdade M' Enganas” e “Roda da Sorte”, ou talk-shows,
como “Parabéns” (1993). Em 1996 chega ao fim o programa Parabéns. Volta ao
humor em “Herman Enciclopédia” (1997), com personagens inesqueciveis, como
Diácono Remédios, Super Tia, Engenheiro Passos de Ferreira, Lauro Dérmio, David
Vaitembora ou Melga e Mike. Segue-se “Herman98” e “Herman99”. Em 2000, Herman
José chega à SIC, apresentando aos Domingos, o talk-show “HermanSIC”. Em 2007
estreia Hora H, 44 episódios de ficção humorística, onde cria personagens como a
Chica Pardoca, Yuri Tupolev, Américo Russo e o editor-chefe decadente e
tabagista Raposinho Pinto. Em Abril de 2007 recebe o décimo segundo Globo de
Ouro, desta vez sob a forma de Prémio Prestígio. Recebe ainda o Prémio
Personalidade Masculina Portuguesa do canal Biography Channel em 2008. Em 2009
muda-se para a TVI, onde apresentou o talent-show “Nasci P'ra Cantar” entre
julho e setembro de 2009. Em 2010 regressa à RTP, para apresentar o “Herman
2010”, um talk-show que continuaria com novas datas, “Herman 2011”, “Herman
2012” e “Herman 2013”. Em 2014, ao lado de Vanessa Oliveira, dirige o programa
das tardes da RTP1 “Há Tarde”, voltando depois ao humor com a série “Nelo e
Idália”.
Filmografia /
como actor:
1977: Cartas de Amor de Uma Freira Portuguesa, de Jess Franco (assinando como
Hermann Krippahl); 1987: O Querido Lilás, de Artur Semedo; 1992: Adeus
Princesa, de Jorge Paixão da Costa; 1996: Mortinho por Chegar a Casa, de Carlos
da Silva e George Sluizer; 2015: O Pátio das Cantigas, de Leonel Vieira.
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