domingo, 12 de junho de 2016

SESSÃO 23 - 15 DE JUNHO DE 2016


A QUIMERA DO OURO (1925)

Há obras de arte que nunca envelhecem. Que importa que tenham sido concebidas na idade Média, em oitocentos, no século XIX ou na época do cinema mudo. Os filmes de Charles Chaplin são uma confirmação plena do que dizemos. Ver “The Gold Rush”, realizado em 1925, noventa anos depois não acarreta uma ruga a esta belíssima obra-prima da comédia. Rever este filme vezes sem conta e reencontrar nele os indícios da eterna juventude é um prazer renovado. A arte, a grande arte, tem estes segredos que ninguém sabe explicar, mas que qualquer pessoa minimamente sensível “sente”.
Charles Chaplin mantem aqui a sua criação, Charlot, o seu vagabundo, agora numa expedição ao Alasca como pesquisador de ouro. Esta é a América da corrida ao ouro (gold rush) em que milhares de pobres diabos se abalançavam montanha acima, enterrando as botas na lama e na neve, em demanda da riqueza que lhe diziam estar enterrada algures e que era necessário descobrir e desenterrar. Este foi um dos sonhos que construiu a América das oportunidades, do “self made man”, do indivíduo transformado em herói do seu próprio destino. No final houve alguns que conseguiram transformar a neve em pepitas e milhões que sucumbiram na miséria e nos despenhadeiros. Foi assim que se criou a filosofia de vida da “american way of life”, com virtudes e defeitos, que perdura até hoje.   
Chaplin era uma personagem curiosa. Nos seus filmes criticava esta forma de viver que não pugnava pela justiça social, mas sim pelo desenrascanço individual, “struggle for life” como divisa, mas há quem diga que na vida pessoal sabia aferrolhar os proventos. Se muitos o criticavam por ter ideias “comunistas”, e por isso foi perseguido nos EUA, o que o levou a exilar-se na Europa e vir a falecer na Suíça, não é menos verdade que o seu pensamento, sendo de grande coerência, não deixava de ter curiosas e sintomáticas derivas. Veja-se o caso de “A Quimera do Ouro”.


Charlot é aqui o “little fellow” que parte pelas montanhas do Alaska em busca de ouro. Vai encontrar-se com Big Jim, um outro pesquisador que tinha encontrado um veio de ouro. A tempestade sobrevem, a falta de comida aperta, o vento gélido tudo leva à sua frente, sobretudo quando as duas portas da cabana onde se encontram se abrem. O “little fellow” mostra-se de uma boa vontade e invenção a toda a prova e inventa uma irresistível refeição de bota cozida, em que os atacadores funcionam como uma espécie de esparguete. Uma das cenas inesquecíveis deste filme, que mais adiante terá outra deliciosa cena numa refeição imaginada por Chaplin para a bela Georgie, num dia de Acção de Graças, e que permite a não menos célebre dança dos pãezinhos. Mas a fome e a comida, ou a sua ausência, para se ser mais correcto, levam ainda às alucinações de Big Jim que olha para o companheiro de cabana e vê uma robusta e apetecível galinha.
Na longa lista de sequências admiráveis que este filme encerra não serão de esquecer o baile numa taberna da montanha, com Chaplin a ser escolhido por Georgie para ser seu par, em detrimento de um janota impertinente, e que acaba com a intervenção de um cão que se vê envolvido a contragosto nos passes de dança do casal. Mas a sequência talvez mais conhecida desta obra será a da cabana em equilíbrio instável no cimo do uma montanha e os esforços da dupla de pesquisadores de ouro que tentam sobreviver à queda. No final a fortuna sorri-lhes e o “little fellow” não dirá que não à indumentária de milionário e consequentes regalias.
Em “A Quimera do Ouro” o humor visual, característica absoluta do cinema mudo, atinge uma maturidade e perfeição totais. Não se trata de colocar apenas polícias e ladrões em perseguições sem fim, mas de criar situações complexas, atravessadas por um toque de poesia inconfundível. Admiravelmente escrito, realizado, interpretado, musicado por Charles Chaplin (que em 1942 recupera o original mudo e o refaz com comentário seu e nova partitura musical), este é o filme pelo qual, segundo as palavras do autor, “gostaria de ser recordado”. Felizmente para nós todos que amamos o cinema, Chaplin não será apenas recordado por este filme, mas também por dezenas de outros. É, porém, uma dádiva dos deuses podermos continuar a recordá-lo nesta corrida ao ouro. Em 1992, este foi um dos 50 filmes preservado pelo National Film Preservation Board, considerados como obra de arte essencial na História do Cinema.


A QUIMERA DO OURO
Título original: The Gold Rush
Realização: Charles Chaplin (EUA, 1925); Argumento: Charles Chaplin; Produção: Charles Chaplin; Música: Charles Chaplin (1942), William P. Perry (1970), Carli Elinor; Fotografia (p/b): Roland Totheroh; Montagem: Charles Chaplin; Design de produção: Charles D. Hall; Direcção de Produção: Alfred Reeves (1942); Assistentes de realização: Harry d'Abbadie d'Arrast, Charles Reisner, A. Edward Sutherland; Departamento de arte: Peter Stitch, Mr. Wood; Som: Mac Dalgleish, Pete Decker, Harold E. McGhan, James L. Fields (versão de 1942);  Companhias de produção: Charles Chaplin Productions; Intérpretes: Charles Chaplin (o prospector solitário), Mack Swain (Big Jim McKay), Tom Murray (Black Larsen), Henry Bergman (Hank Curtis), Malcolm Waite (Jack Cameron), Georgia Hale (Georgia), Albert Austin, E. Espinosa, Al Ernest Garcia, Inez Gomez, Sid Grauman, Lita Grey, Joan Lowell, Margaret Martin, Ray Morris, Betty Morrissey,  Princess Neela, A.J. O'Connor, H.C. Oliver, Barbara Pierce, Tiny Sandford, Jane Sherman, Larry Steers, Daddy Taylor, Art Walker, Tom Wood, etc. Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal: Warner / MK2; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 28 de Março de 1927.


CHARLES CHAPLIN (1889-1977)
Charles Spencer Chaplin nasceu em Londres, a 16 de Abril de 1889, filho de Charles Chaplin e de Hanah Hill. O pai era actor, cantor e compositor, a mãe cantora e bailarina de "music-hall", conhecida pelo nome de Lily Harley. Aos cinco anos, Chaplin, ainda que ocasionalmente, já canta em espectáculos de variedades, ao lado do pai, em substituição da mãe. Em Março de 1894 morre-lhe o pai e a situação da família é de uma miséria extrema, com a hospitalização da mãe, dada como louca. Chaplin e seu irmão Sidney entram para a Hanwell Residential School, nos subúrbios de Londres, um orfanato onde Chaplin se mantém até 18 de Janeiro de 1898. Volta então para junto da mãe, aparentemente recuperada e exercendo costura. Frequenta depois o Hern Boys College, onde estudará durante 18 meses, aparecendo simultaneamente nalguns espectáculos de "music-hall" londrinos de segunda categoria.
Contratado por grupos como os de "Maggie Morton" e "The Eight Lancashire Lads", Chaplin exercita-se entre as variedades e os números de circo, numa altura em que a mãe volta a ter nova crise e é internada outra vez. Fica sozinho em Londres (o irmão partira, como marinheiro, para a África do Sul), torna a conhecer um período de fome, desolação e negra miséria. Tem onze anos e sobrevive em pequenos papéis, em peças como “From Rags to Riches” (Da Miséria à Fortuna), um melodrama, ou “Sherlock Holmes”, cuja carreira o ocupa durante algum tempo.
O circo interessa-o igualmente, até que em 1906 é contratado pelo "Casey's Court Circus", um circo infantil, onde todos os números eram interpretados por crianças. Uma digressão de um ano assegura-lhe a sobrevivência, até que Sidney Chaplin, que entretanto se tornara seu empresário, lhe consegue um contrato para a Fred Karno Repertoire Company. A sua carreira ascensional irá começar aqui. Várias digressões internacionais, a Paris, pela província inglesa, aos EUA e ao Canadá, e finalmente uma segunda digressão aos Estados Unidos que o leva até Nova Iorque, onde o produtor Adam Kessel, que fundara a Keystone Cª, repara nele e o pretende contratar, o que só virá a acontecer em 12 de Maio de 1913. Tornara-se conhecido na América sobretudo pela sua contribuição num episódio teatral, “A Night in an English Music Hall”. A última representação de Charles Chaplin para a companhia de Fred Karno terá lugar em 28 de Novembro de 1913, no Empress Theatre, de Kansas City. Em Dezembro desse ano, já em Hollywood, trava conhecimento com Mack Sennett e os processos cómicos da Keystone Film Company. Assina o primeiro contrato para o cinema em 2 de Janeiro de 1914, obrigando-se a participar em 35 filmes de uma ou duas bobinas, durante esse ano, contra uma remuneração de 150 dólares semanais, ou seja 7800 dólares por ano. Entre 16 e 19 de Janeiro filma o seu primeiro filme, “Making a Living” (Charlot Jornalista).
No seu livro autobiográfico, Charlie Chaplin conta como nasceu a personagem Charlot, “vagabundo, gentleman, poeta, sonhador". Depois de um primeiro filme, “Charlot Jornalista” (Janeiro de 1914), Chaplin foi convidado para figurar num segundo filme de Mack Sennett: "Não tinha a menor ideia da maneira como havia de me apresentar. Mas, quando me dirigia para o vestuário, disse com os meus botões que ia vestir umas calças largas de mais, pôr uns sapatos enormes e completar o conjunto com uma bengala e um chapéu de coco. Queria que tudo estivesse em contradição: as calças exagerada­mente largas, o casaco muito apertado, o chapéu pequeno de mais e os sapatos enormes. Devia ainda resolver se assumiria um ar de jovem ou de velho, mas lembrando-me de que Sennett me tinha julgado mais velho, acrescentei à minha cara um pequeno bigode que, segundo me parecia, dar-me-ia mais alguns anos sem ocultar a minha expressão."
Em 1915 Chaplin deixa a Keystone e muda-se para a Essanay, onde roda 16 novos títulos durante esse ano. Recebe agora 1250 dólares semanais, o que corresponde a 65 000 dólares num ano. Chaplin passa a assegurar a realização integral das suas obras, sendo da sua responsabilidade argumento, realização, cenários, recrutamento de outros actores e técnicos e interpretação. Contrata Edna Purviance, uma actriz com quem irá estabelecer longa e forte amizade. Inicia-se a contribuição de Rollie Totheroh, que acompanhou Chaplin durante 40 anos.
Desagradado com as imposições dos produtores em relação a “Carmen”, Chaplin decide não renovar o contrato com a Essanay e ingressa na Mutual. As condições semanais melhoram. Um total de 675 000 dólares para doze filmes. Trabalhará para a Mutual até Setembro de 1917 tendo, porém, já assinado novo contrato, desta feita com a First National, em Junho do mesmo ano. Em Outubro de 1917 principia a construção do Estúdio Chaplin, num terreno adquirido em Sunset Boulevard, em Hollywood.
A First National assegura a colaboração de Chaplin e Mary Pickford. O contrato de Charles Chaplin prevê a realização de 8 títulos em 18 meses, contra o que receberá 1 075 000 dólares. Chaplin funda a Chas Chaplin Film Cª, onde passarão a ser rodados todos os seus filmes, até “Luzes da Ribalta”. O actor passa a controlar a produção das suas obras, cobrando 50% das receitas.
Entretanto, entre Março e Junho de 1918 associa-se à propaganda americana de intervenção na I Guerra Mundial. A 23 de Outubro desse ano, casa com Mildred Harris, uma actriz de 16 anos, de quem se divorciará a 19 de Novembro de 1920. Em Setembro de 1921 inicia uma viagem à Europa, com paragem em Londres, Paris e Berlim, para apresentação do seu filme “Garoto de Charlot”.
Após um contrato de cinco anos com a First National, Chaplin passa a produzir os seus próprios filmes, através da United Artists, produtora que fundara em 1919, conjuntamente com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D. W. Griffith, pelo que também era conhecida pela designação de “The Big Four” (Os Quatro Grandes). Por essa altura é muito falada a ligação de Chaplin com Pola Negri, cuja ruptura se anuncia no Verão de 1923. Em 24 de Novembro do ano seguinte, casa secretamente com Lita Grey, actriz que contratara para “A Quimera do Ouro”, que virá a ser, porém, interpretada por Georgia Hale.
Depois dos escândalos de Mildred Harris e Pola Negri (entre outros), Chaplin enfrenta nova acção de divórcio, desta feita instaurada por Lita Grey, em Janeiro de 1927. A opinião pública começa a protestar contra Chaplin e pede a proibição dos seus filmes. O puritanismo americano vem ao de cima. Um grupo de escritores surrealistas franceses ergue-se, todavia, em defesa de Chaplin, num manifesto intitulado "Hands off Love", redigido em inglês por Aragon, e assinado por Éluard, Breton, Man Ray, Desnos, Crevel, Georges Sadoul, Tanguy, Prévert, Queneau, etc,
Após o julgamento, Chaplin tem novos problemas com a justiça americana, desta feita com o fisco. Anteriormente, a sua mãe, que passara a viver com ele nos EUA, tinha igualmente sido ameaçada de expulsão. Hannah Chaplin virá a morrer em Agosto de 1929. Entretanto, as primeiras longas-metragens de Charles Chaplin conhecem um sucesso sem precedentes. “A Woman of Paris” (Opinião Pública), único filme realizado por Chaplin e não interpretado por si, “A Quimera do Ouro” e “O Circo” marcam os últimos anos do mudo. Em 1927, com o advento do sonoro, Chaplin sofre um rude golpe. Procura manter-se fiel aos processos do mudo, começando a rodar “Luzes da Cidade” como tal. Interrompe, porém, as filmagens para experimentar o sonoro. Mas, em 1935, oito anos depois do aparecimento do sonoro, volta a rodar um filme inteiramente mudo: “Tempos Modernos”.
Em 1933, torna a casar, pela terceira vez, desta feita com Paulette Goddard, de quem virá igualmente a divorciar-se em 1942.
Estreado em 1936, “Tempos Modernos” custou milhão e meio de dólares, sendo recebido com frieza pela crítica americana, que acusa o filme de fazer propaganda comunista. É proibido em Itália e na Alemanha, mas tem um êxito extraordinário em Londres, Paris e Moscovo. Antes de iniciar a rodagem de “O Ditador”, Chaplin anuncia vários outros projectos que não chega a realizar: “Jesus”, “Hamlet”, “O Bravo Soldado Schweik”, “A Pequena Selvagem de Bali”...
Os problemas de Chaplin não desaparecem nos EUA. Instauram­-lhe diversos processos, quer por empresas que se consideram prejudicadas, quer por sociedades que acusam o autor de plágio, quer por novas paixões (como no caso de Joan Berry, que o põe em tribunal, sob a acusação de não reconhecimento de paternidade, de que Chaplin é ilibado). Com a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, Charles Chaplin enquadra-se nessa luta. Compreendendo o papel desempenhado pela URSS no confronto contra o nazismo, aparece em diversos comícios e reuniões políticas de apoio à luta deste povo. O seu ódio a Hitler e ao nacional-socialismo leva-o a dirigir “O Ditador”, que lhe acarretaria mais dissabores. Em 1943, Chaplin conhece Oona O' Neill, filha do dramaturgo americano Eugene O' Neill, com quem casa a 16 de Junho: ele tem 56 anos e Oona 18. No ano seguinte, lança-se na concepção de “Monsieur Verdoux”, que se estreará em 1947. Com a estreia de “Verdoux”, Chaplin volta a enfrentar uma longa e intensa campanha hostil por parte da imprensa americana. A Comissão das Actividades Anti-americanas, presidida por Parnell Thomas, inicia igualmente um ataque sistemático a Chaplin, que culmina com a chamada do cineasta a depor, o que este recusa, enviando em seu lugar um telegrama: "Sou a favor da paz". Os "Dez de Hollywood" são nessa altura condenados a um ano de cadeia, por terem recusado comparecer perante esta comissão. Em 1952, termina “Luzes da Ribalta”, onde trabalha ao lado de Buster Keaton, e embarca para a Europa. O ministro da justiça do presidente Truman e a Comissão das Actividades Anti-Americanas, do senador McCarthy, anunciam a instauração de um processo a Chaplin. Acusam-no de simpatias comunistas e querem que deponha perante a Comissão, o que volta a recusar. Chega dias depois a Londres e é recebido entusiasticamente. Passa depois por Paris e Roma. A Europa rende-se a Charlot. Em 1953, Chaplin instala-se na Suíça e desiste de voltar à América. Passa a viver num solar, em Corsier­-sur-Vevey, perto de Lausana. A decisão de renunciar a viver nos EUA anuncia-a nas seguintes palavras: "Desde o fim da Segunda Guerra Mundial fui objecto de uma campanha de mentiras e de propaganda hostil levada a efeito por poderosos grupos reaccionários. Com a ajuda da imprensa de escândalos, criaram uma atmosfera incómoda, na qual as pessoas de espírito liberal podem ser perseguidas. Nestas condições, achei que me era impossível continuar nos Estados Unidos o meu trabalho cinematográfico".
Na Europa dirige ainda “A King in New York” (1957), só estreado nos EUA 20 anos depois, e “A Countess from Hong Kong” (1967). Recupera filmes antigos, renova as partituras musicais de alguns, pensa ainda lançar-se num novo empreendimento, "The Freak", a ser interpretado pela irmã, Victoria Chaplin, mas acaba por dar por terminada a sua carreira. Em 1975, é armado cavaleiro pela Rainha e, dois anos depois, em plena noite de Natal, a 25 de Dezembro, morre durante o sono.


Filmografia (longas metragens): 1823: A Woman of Paris: A Drama of Fate (A Opinião Pública); 1925: The Gold Rush (A Quimera do Ouro); 1926: Camille ou The Fate of a Coquette, de Ralph Barton (CC não creditado); 1928: The Circus (O Circo); 1931: City Lights (Luzes da Cidade); 1936: Modern Times (Tempos Modernos); 1940: The Great Dictator (O Grande Ditador); 1947: Monsieur Verdoux (O Barba Azul); 1952: Limelight (Luzes da Ribalta); 1957: A King in New York (Um Rei em Nova Iorque); 1967: A Countess from Hong Kong (A Condessa de Hong Kong).

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