domingo, 29 de maio de 2016

SESSÃO 18 - 31 DE MAIO DE 2016



O BAILE DOS BOMBEIROS (1976)

Milos Forman foi, no período de ouro do cinema checo, aquele que alcançou maior repercussão nacional e internacional. Depois de passar pela curta metragem, estreou-se na longa com “O Ás de Espadas”, em 1964, onde começou a ser notado pela forma atenta e sensível como acompanhava vida de um jovem, oriundo de família humilde, mas tradicionalista e austera, que trabalha como vigilante num supermercado e persegue uma das mais bonitas alunas da escola. Depois, em 1965, continua a olhar para a juventude do seu país e, através dela, para toda a sociedade, através dos olhos de uma rapariga, com “Os Amores de Uma Loura”, onde encantos e desencantos da juventude mereceram a nomeação para o Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa. Nova nomeação em 1967, com “O Baile dos Bombeiros”, que merecerá comentário mais detalhado.
É normal em ditaduras os artistas não abordarem directamente os assuntos que pretendem debater e criticar e fazê-lo através de metáforas e sub-textos. Todos os cineastas checos dos anos 60 o fizeram, Milos Forman foi um dos mais cultivou a metáfora e “O Baile dos Bombeiros” é um bom exemplo deste processo, partindo de uma aparentemente inócua comédia sobre um baile de bombeiros para denunciar alguns dos aspectos mais negativos da sociedade checa desta época, onde imperava a burocracia, a falta de liberdade, os interesses criados, a corrupção, a hipocrisia, uma forma militarista de entender o exercício do poder, enfim, as características normalmente dominantes do despotismo.
É isso mesmo que se pode entender ao ver ainda hoje esta comédia deliciosamente amarga, sobre uma noite de baile organizada por uma corporação de bombeiros. A banda sonora, que é conduzida quase sempre em tom de marcha militar, arranca logo desde o genérico marcando o ritmo de toda a obra. A sequência inicial mostra a comissão organizadora do baile a discutir sobre a entrega de um machado de ouro ao antigo chefe de bombeiros como lembrança pelos seus muitos anos à frente da colectividade. Um lamenta não ter sido efectuada a homenagem “no ano passado, quando ele cumpria 85 anos de vida, e antes de se saber que tinha um cancro.” Agora, pode parecer que lhe estão a ofertar o machado por causa do cancro. “Mas ninguém lhe disse que tinha um cancro”, afiança um. Nem os médicos. “Nem que tenha o pior cancro do mundo, nenhum médico lhe iria dizer!” O que define desde logo a atmosfera social, onde impera o segredo, a dissimulação e a duplicidade. Alguém vela pelos outros. Pelo que devem e não devem saber. 


Enquanto se ultimam os preparativos na sala onde irá decorrer o baile, a um canto encontra-se o altar onde se colocaram as ofertas que irão ser sorteadas numa tômbola. Mas começam a desaparecer os prémios. Para já não se encontra a cabeça de porco que estava ali ainda há pouco. Mas uma desgraça nunca vem só, como se irá perceber ao longo do filme.
Começado o baile, a Comissão Organizadora olha atentamente para uma fotografia em página dupla de uma revista onde se vêem as muitas misses que concorreram a um concurso internacional. À sua medida, eles também terão as suas misses. “No mínimo oito”, concordam. E partem para a sala de baile à procura de raparigas que preencham os requisitos para entrarem na competição. No caos de uma sala onde se amontoam dezenas e dezenas de pares, os membros da Comissão percorrem rostos, mas sobretudo pernas e bustos, não esquecendo os traseiros. Sobem mesmo ao primeiro andar para terem uma melhor perspectiva, do alto, sobre os decotes. Sem grandes resultados. As mais bonitas não querem ser escolhidas, as outras não querem eles escolher, mas têm de o fazer quando a mulher de um dos membros da Comissão grita para o marido, aponta esta, ou o velho companheiro impõe a filha que “sai a ele”.  Entretanto desaparece o bolo de chocolate e a garrafa de whisky.
Ao fim de muito esforço, as candidatas “escolhidas” são encurraladas na sala da direcção para lhes ser ministrado treino militar ou como desfilar numa passerelle, “esquerdo, direito, um, dois, esquerdo, direito.” A mãe de uma das candidatas condu-la pela mão e fica encostada a um canto para ter a certeza de que “tudo é correcto e honesto”.  Uma das candidatas chega tarde à chamada, porque resolveu ir a casa vestir o biquíni e quer despir-se na frente de todos. A mãe da outra rapariga é convidada a ir dançar, para a sala ficar mais intimista. Ensaiam-se poses, desfiles, mas é tudo imposto, nada é feito de livre vontade. Nem numa festa, a liberdade é garantida. Há que comportar-se segundo os preceitos dos que mandam, dos que detêm o poder. Nada mais óbvio.


Partem a toque de caixa para o salão de Baile, a Comissão sobe ao palco e espera que as candidatas façam o mesmo. Mas estas desaparecem, escondem-se, resistem como podem. Inicia-se a caçada à concorrente que é levada à força para o cimo do palco. Sempre que alguém assume pose de discurso no palco, o velho dirigente que espera ser chamado para a entrega do “machado de ouro”, atravessa a sala em passe garboso julgando ter chegado a sua vez. E invariavelmente devolvido ao seu lugar. Entretanto, vão desaparecendo mais e mais prémios da tômbola, alguns deles embalados pelos arrufos de um par de namorados que se escondeu debaixo da mesa à procura das contas de um colar que rebentou.
Na confusão geral alguém pede silêncio. Lá fora ouve-se a sirene dos bombeiros, chamando para um fogo na aldeia. Uma casinhota arde, deixando sem nada um pobre velho que olha para as cinzas desesperado. Populares e bombeiros acorrem. Gera-se um momento de solidariedade espontânea, mas também o aproveitamento dos oportunistas que não perdem uma chance de fazer negócio. O proprietário do restaurante onde decorre o baile, traz garrafas de cerveja e inicia o negócio das bebidas que prospera. Mas, apagado o fogo, quando regressam ao baile, a surpresa é geral. Todos oferecem os seus bilhetes da tômbola para entregar ao velho que ficou sem nada, mas a verdade é que não há nada no balcão dos prémios. A Comissão lamenta o sucedido e dá uma oportunidade. Apagam-se as luzes e quem roubou recoloca o furto no lugar devido. Quando a luz se volta a acender, mesmo os dois ou três prémios insignificantes que ainda lá se encontravam desapareceram. Nova tentativa, e quem é apanhado com a boca na botija, ou com a cabeça de porco na mão, é um dos poucos honestos da noite que tenta emendar o furto da mulher: “Todos roubam, e só me vês a mim? Por que hás-de ser tu o único a ser honesto?”, grita-lhe a mulher.
A lição está bem sabida. Há palavras que não se conseguem proferir. “Solidariedade”, o idiota nunca vai dizer “Solidariedade”, ri-se um grupo de jovens, perante a dificuldade do orador que não se recorda da palavra (nem do conceito).
E tudo termina com uma moral amarga: “Quem não roubou, é como se não lhe tivesse saído nada.” Há mesmo quem desista de explicar o sucedido: “As pessoas sabem como é, não é preciso explicar nada.” Prática corrente, esta do roubo. E chega a homenagem, numa sala deserta, onde só ficou o velho dirigente dos bombeiros, que recebe das mãos da Comissão Organizadora uma caixa e um discurso pomposo. O velho agradece, abre a caixa, olha e volta a fechar. Na neve, uma cama isolada, no meio de vários “salvados” do incêndio. Amanhece e dois velhotes dormem, costas contra costas, envolvidos num edredão.
Totalmente interpretado por actores não profissionais, dirigidos com notável argúcia e delicadeza, um sentido apurado de observação de pequenos apontamentos humanos pitorescos e coloridos, rostos populares, inesquecíveis de verdade, uma crítica perspicaz mas humanista, compreensiva das fraquezas dos frágeis e não tanto das dos poderosos, uma câmara que evolui com sagacidade no interior caótico de uma sala de baile, uma fotografia que capta a cor do essencial e uma partitura musical envolvente, uma montagem que deixa a imagem correr, sem sobressaltos, e parece ser esta a fórmula encontrada para esta comédia de (maus) costumes que Milos Forman assina e que o levaria da Checoslováquia a Hollywood, onde se comprovou vir a ser um dos grandes cineastas da segunda década do século XX.


O BAILE DOS BOMBEIROS
Título original: Horí, má panenko ou The Firemen's Ball (em inglês)
Realização: Milos Forman (Checoslováquia, Itália, 1967); Argumento: Milos Forman, Jaroslav Papousek, Ivan Passer, Václav Sasek; Produção: Rudolf Hájek, Carlo Ponti; Música: Karel Mares; Fotografia (cor): Miroslav Ondrícek; Montagem: Miroslav Hájek; Design de produção: Karel Cerný; Direcção artística: Karel Cerný; Decoração: Vladimir Macha; Guarda-roupa: Zdena Snajdarová; Maquilhagem: Rudolf Hammer; Direcção de Produção: Jaroslav Solnicka; Assistentes de realização: Jaroslav Papousek; Som: Adolf Böhm; Companhias de produção: Carlo Ponti Cinematográfica, Filmové Studio Barrandov; Intérpretes: Jan Vostrcil (Chefe do comité), Josef Sebánek, Josef Valnoha, Frantisek Debelka, Vratislav Cermák, Josef Rehorek, Václav Novotný, Frantisek Reinstein,  Frantisek Paska, Ladislav Adam (Membros do comité), Josef Kolb (Josef), Jan Stöckl (chefe de bombeiros retirado), Stanislav Holubec (Karel), Josef Kutálek (Ludva), Frantisek Svet (velho), Jirí Líbal, Antonín Blazejovský, Stanislav Ditrich, Milada Jezková, Jarmila Kucharová, Alena Kvetová, Anna Liepoldová, Miluse Zelená, Marie Slivova, Hana Hanusová, Hana Kuberová, Karel Valnoha, Vlastimila Vlková, etc. Duração: 71 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Agosto de 1972.


O HUMOR A LESTE E MILOŠ FORMAN (1932 - )
Muito influenciadas pelo aparecimento da “nouvelle vague”, as cinematografias de Leste europeu, desde a própria URSS até à Hungria, Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia, entre outras, viram surgir gerações de novos cineastas que renovaram o cinema tradicionalista desses países e lhe introduziram tonalidades de humor até aí desconhecidas. Na Polónia pode citar-se o caso de Roman Polanski, na Checoslováquia os de Milos Forman ou Vera Chytilová, na Hungria, Károly Makk entre outros. Imprimiram uma maior liberdade de tratamento a certos temas e criaram estilos desenvoltos que permitiu um humor discreto mas, por vezes, corrosivo.
Jan Tomáš Forman, mais conhecido como Miloš Forman, nasceu em Čáslav, na Checoslováquia, a 18 de Fevereiro de 1932. Os pais morreram no campo de concentração nazi de Auschwitz, deixando Jan Thomas órfão muito novo. Realizador, actor, argumentista, formou-se na Escola de Cinema de Praga, começando a carreira como assistente de realização e argumentista, autor de duas curtas-metragens, uma delas, Konkurs (1963), que lhe abriu caminho para a primeira longa-metragem, “Cerny Petr” (1963), que, conjuntamente com “Lásky Jedné Plavovásky” (1965) e “Horí, má panenko” (1967), lhe trouxe prestígio internacional. Em 1969, depois do falhanço da “Primavera de Praga” e da ocupação da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, exilou-se nos EUA, regressando ao cinema com “Taking Off” (1971). Teve o seu primeiro Oscar como realizador com “One Flew over the Cuckoo's Nest” (1975) e dirigiu depois vários sucessos, como “Hair” (1979), “Ragtime” (1981), “Amadeus” (1984), sobre a vida de Wolfgang Amadeus Mozart, filme que recolheria oito Oscars e que lhe daria sua segunda estatueta da Academia, “Valmont” (1989), “The People vs. Larry Flynt” (1996) ou “Man on the Moon” (1999). Foi casado com Jana Brejchová (1951-1956) de quem se divorciou e juntou-se com Vera Kresadlová (1964-1999). Tornou-se cidadão norte-americano em 1975, e casou-se com a terceira mulher (1999), Martina Zborilova, sua assistente em “The People vs. Larry Flynt” (1996). Presentemente é director da divisão de cinema da Universidade de Columbia.


Filmografia / como realizador: 1960: Lanterna magika II; 1963: Konkurs; Kdyby ty muziky nebyly; Cerný Petr (O Ás de Espadas); 1965: Lasky Jedne Plavovlásky (Os Amores de uma Loira); 1966: Dobre placená procházka (TV); 1967: Horí, má Panenko (O Baile dos Bombeiros); 1971: I Miss Sonia Henie; 1971: Taking Off (Os Amores de uma Adolescente); 1973: Visions of eight (Visões dos Oito) (episódio “The Decathlon”) (Doc.); 1975: One Flew Over the Cuckoo's Nest (Voando sobre um Ninho de Cucos); 1979: Hair (Hair); 1981: Ragtime (Ragtime); 1984: Amadeus (Amadeus); 1989: Valmont (Valmont); 1996: The People vs. Larry Flynt (Larry Flynt); 1999: Man on the Moon (Homem na Lua); 2006: Goya's Ghosts (Os Fantasmas de Goya); 2007: Semafor: Nejvetsí hity 2; 2009: Dobre placená procházka.

domingo, 1 de maio de 2016

SESSÃO 15 - 10 DE MAIO DE 2016


A ULTRAPASSAGEM (1962)

“Il Sorpasso” é definitivamente uma das obras-primas da cinematografia italiana e um dos grandes filmes de Dino Risi, que consegue com esta comédia atingir um nível de qualidade estética e de significado temático mais do que evidentes. Transformou-se num filme de culto. De resto, define plenamente um estilo e um pensamento que têm a ver unicamente com um “autor”. Há vários temas que começam a impor-se como constantes na obra deste cineasta: a viagem como iniciação, a estrada como cenário, o carro, forma de promoção social, mas também local privilegiado de confissões, o aldrabão fala-barato em oposição ao idealista tímido, a dispersão de personagens populares (o mesmo actor em diversos registos, ou diversos actores compondo uma galeria de tipos, que podem coexistir ou não na mesma obra), a crítica contundente à Itália do pós-guerra, aquela que ficou conhecida como a do “milagre económico”, a que deserdou a esquerda da utopia, a que reabilitou a direita vencida na guerra, promovida pela reconstrução (por isso aparecem tantos construtores civis nos seus filmes, quase invariavelmente na qualidade de traficantes de influências e corruptos profissionais). Sobretudo começa a impor-se um olhar comprometido para com a realidade social italiana (mas não só), onde não se salva quase ninguém, onde apenas se olham com alguma simpatia pequenos meliantes. Mas, curiosamente, há alguma dose de compreensão humana para quase toda a gente. Dino Risi critica, por vezes com violência, mas nunca propõe a “pena capital” (óbvia forma metafórica de me referir a um humanismo latente no olhar do cineasta e às magníficas composições dos seus actores de eleição, que, por serem tão magníficos, nunca deixam de inspirar alguma simpatia, mesmo quando procedem das formas mais vis). Dino Risi critica pelo riso a “humana condição”, sem grandes esperanças de transformações, é certo, mas com a serena tranquilidade de quem sabe que, apesar de tudo continuar a ser como é, vale a pena intervir pela arte, pela crítica, pelo desenho da crise.
Com argumento de Ettore Scola, Ruggero Maccari e Dino Risi, este é um filme lendário, rodado em 1962, que funciona admiravelmente como panorâmica de observação mordaz e crítica da sociedade italiana destes anos de retoma económica, de despreocupada e súbita prosperidade que, vinda depois da privação da guerra, cria igualmente uma atmosfera de leviandade e arrivismo desnorteados. As privações provocadas pelo fascismo e pela ocupação alemã, as lutas da Resistência, a vitória dos Aliados e a paz trouxeram consigo um conjunto de esperanças e de utopias que cedo cederam perante os comportamentos do dia-a-dia, quer da direita mais reacionária, que se “moderniza” e se refunda, quer da esquerda mais extrema, que se emburguesa ou se radicaliza, em ambos os casos perdendo o pé e isolando-se da realidade. O que fica deste contexto é uma sociedade sem valores, materialista, consumista, pensando apenas na promoção social, no lucro a todo o preço, no desenrascanço. O automóvel é, nesta situação, um elemento essencial que funciona como símbolo. Uma novidade, como símbolo de uma democratização generalizada. Um símbolo de status. É Dino Risi quem o afirma: “A Itália da guerra é a terra da bicicleta ou dos que andam a pé, depois veio a “motorina” (motorizada, a Lambreta) e por fim “la macchina”, o fabuloso automóvel.”


O filme passa-se no feriado de 15 de Agosto, em Roma. O “ferragosto”, assim se denomina o dia, comemora a assunção da Virgem Maria. A capital fica deserta, não há vivalma, nas ruas quase não circulam viaturas, todas as lojas fecham. Mas Bruno Cortona (Vittorio Gassman) é uma excepção e circula no seu Lancia Aurelia B24 Sport, pelas ruas de Roma, com a celeridade de uma piloto de Fórmula 1. Como veremos ao longo do filme, não tem nada que fazer, mas o que não tem a fazer faz depressa. Anda sempre em busca de alguma coisa. Nesta altura, procura um telefone, pára na berma da estrada para beber, olha para uma janela de um andar defronte e descobre um jovem estudante de direito, a quem pede para ligar para o número tal e perguntar por Marcela, informando-a que está atrasado, mas vai chegar. Outra constante na sua vida: estar atrasado para chegar não se sabe onde, mas anunciar que vai chegar. Roberto Mariani (Jean-Louis Trintignant), que prepara exames para Setembro, e não vê senão livros de estudo, e a ausência de uma bela vizinha, sem saber no que se mete convida Bruno a subir. É muito mais simples ser ele mesmo a telefonar. Nada a fazer. Bruno assenhoreia-se da situação, toma conta de Roberto, que, meio adormecido numa onda de um transbordante vitalismo, acaba por embarcar numa extenuante viagem pelas estradas da Itália, abrindo deste modo o filme a um “road movie”, que iria inclusive influenciar directamente (e confessadamente) o “Easy Rider”, de Denis Hopper e Peter Fonda…
Já agora, para se perceber as características da personagem, um pequeno apontamento. Bruno telefona a Marcela, que não atende. Bruno protesta: “Que vão para o inferno! Idiotas! Combinámos encontrarmo-nos às 11 horas, é meio-dia e já não estão!”
Que Roberto é “o aluno”, ficamos a saber desde logo, na sua apresentação. Mas não sabíamos ainda que o iniciador é Bruno, que o levará pelos perigosos caminhos do viver perigosamente, de uma forma sedutora, é óbvio, mas fundamentalmente perigosa, pondo em risco a sua própria vida, mas também a dos outros, de uma maneira egoísta, irresponsável, absurda. No início dos anos 60, nas estradas italianas, conduz a 120, ultrapassa sem qualquer precaução, agride verbalmente os outros automobilistas, brinca com peões, motoristas e ciclistas, instala-se um pouco por todo lado como se a casa fosse sua (inclusive na casa da sua ex-mulher, que tem para com ele uma atitude muito semelhante à que os espectadores lhe dedicam: alguma simpatia, alguma compreensão para com o miúdo que não cresceu, e que se mantém mimado vida fora, até uma altura em que a idade não perdoa já). O carro é aqui o elemento de referência, tem colado no painel de comandos um retrato de Brigite Bardot, o “sex simbol” europeu destes tempos, com uma bela inscrição de um moralismo machista: “Sê prudente, que te espero em casa!” Quando ultrapassa um ciclista, Bruno grita-lhe: “Compra uma Vespa!”, para logo a seguir completar o raciocínio: “O ciclismo não me interessa, é antiestético, engrossa as coxas. Prefiro bilhar ou cavalos…”.
As “boutades” de Bruno não têm fim. Passam por três padres alemães, a contas com um furo num dos pneus do automóvel. A uma pergunta de Bruno, um dos jovens sacerdotes responde em latim, Bruno não percebe, Roberto traduz: “Eles perguntam se temos um macaco.” “E como se diz que não temos?”, pergunta Bruno. Roberto responde: “Num habemus...” Bruno vira-se para os alemães e, no seu melhor latinório, faz-se compreender: “Num habemus macaco, ciao!”, e parte a toda a velocidade.
Quando surge a canção de Domenico Modugno, Bruno refere-se a um filme de Antonioni (O Eclipse), dizendo que esta música tem “aquela coisa, a solidão, a incomunicabilidade, e aquela outra coisa que está na moda, a alienação, como nos filmes de Antonioni.” Pergunta a Roberto se viu “O Eclipse”. Antes que Roberto diga o que quer que seja, Bruno opina, decisivo: “Eu dormi o tempo todo, foi uma bela soneca. Muito bom realizador, esse Antonioni!” (recorde-se que Dino Risi e Antonioni se estrearam em “Páginas da Vida”, de Zavattini).
Enquanto o carro vai circulando pelas estradas de Itália, a banda sonora vai registando alguns dos “hits” desses anos, mostrando também neste registo sonoro a descontração e ligeireza da sociedade italiana. Ouvimos canções e vozes que marcaram um período, o que também é uma das características do cinema de Risi. “Quando, Quando, Quando”, de Tony Renis e Alberto Testa, na voz de Emílio Pericoli, “St. Tropez Twist”, de Cenci-Faiella, “Per un attimo”, de Luigi Naddeo, “Don’t Play that Song” (You Lied), de Ahmet M. Etergun e Betty Nelson, as três cantadas por Peppino di Capri, “Giani”, de Tassone–Cássia, na voz de Miranda Martino, “Vecchio Frak”, de e na voz de Domenico Modugno, ou “Pinne Fucili Occhiali”, de Rossi-Vianello,  na interpretação de Vianello. Mas é, sobretudo, “Guarda come Dondolo”, igualmente de Rossi-Vianello, na voz de Edoardo Vianello, que dá o tom ao filme e o faz recordar musicalmente.
Esta viagem por Itália vai sendo pontuada por paragens que nos permitem conhecer melhor os protagonistas que se servem quase sempre da viagem no carro para estreitar relações e melhor se conhecerem um ao outro. Mas é quando param em casa da ex-mulher de Bruno que se percebe algum do passado e muitas das suas frustrações e fracassos, e é nessa altura igualmente que se descobre a filha de Bruno, e as relações entre os pais e ela, a sua atracção por um comendador bem servido de liras e de idade; é quando Roberto redescobre a casa dos tios, onde passou grande parte da sua meninice, que se compreende a sua timidez, a ignorância da vida, os pequenos traumas da sua adolescência. É no restaurante, onde dá de caras com o patrão, que o contratou e que o descobre na boa vida em vez de estar a trabalhar, que vem ao de cima o outro lado da personalidade de Bruno, a sua cobardia, o fala-barato, o desenrascanço. Que todavia não se detém perante nada e parte para a pista de dança com a mulher do patrão, a quem seduz (e por quem é descaradamente seduzido).
Curiosidades sobre a realização desta obra: Alberto Sordi foi o primeiro actor pensado para o principal papel, mas como estava contratado em exclusivo pelo produtor Dino De Laurentiis, Dino Risi teve de optar por Gassman. Com Alberto Sordi, certamente que a densidade do personagem seria diferente. Diferente também poderia ter sido o final da obra, com Roberto a matar Bruno (o que parece chegou a estar na ideia de Risi), mas este final não foi sequer rodado por razões de orçamento.
Este é um filme que denuncia um quase completo pessimismo do cineasta para com a humanidade, por igual. Não há personagens positivas (felizmente Dino Risi não seguia a filosofia do realismo soviético!), há apenas subtis gradações que vão da mediocridade de uma existência cinzenta até à hipocrisia mais brutal de exploradores sem escrúpulos, passando pelo vitalismo patético de quem foi apanhado numa engrenagem suicida (ou assassina) e não consegue sequer tempo para parar e pensar. Nesta sociedade, onde o que conta é “ultrapassar” e passar à frente, as consequências acabam por ser sempre trágicas.

A ULTRAPASSAGEM
Título original: Il Sorpasso ou The Easy Life
Realização: Dino Risi (Itália, 1962); Argumento: Dino Risi, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ettore Scola, Ruggero Maccari; Produção: Mario Cecchi Gori; Música: Riz Ortolani; Fotografia (p/b): Alfio Contini; Montagem: Maurizio Lucidi; Design de produção: Ugo Pericoli; Guarda-roupa: Ugo Pericoli; Maquilhagem: Gustavo Sisi; Direcção de produção: Pio Angeletti, Umberto Santoni; Assistentes de Realização: Guglielmo Ambrosi; Departamento de arte: Enrico Fiorentini; Efeitos Especiais: Aurelio Pennacchia; Companhias de produção: Incei Film, Fair Film, Sancro Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (Bruno Cortona), Catherine Spaak (Lilly Cortona), Jean-Louis Trintignant (Roberto Mariani), Claudio Gora (Bibi), Luciana Angiolillo (mulher de Bruno), Linda Sini (Tia Lídia), Franca Polesello, Barbara Simon, Lilly Darelli, Mila Stanic, Nando Angelini (Amedeo), Edda Ferronao, Luigi Zerbinati (comendador), Bruna Simionato, etc.; Locais de rodagem: Roma, Castiglioncello, Livorno, Toscânia, Itália; Duração: 105 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 4 de Dezembro de 1964.

DINO RISI (1916-2008)
Em 1953, em pleno apogeu do “Neo-Realismo” em Itália, um grupo de realizadores e argumentistas lançou uma obra colectiva que ficou conhecida como manifesto desse movimento estético, cultural, cinematográfico e social e político também. Chamava-se “Retalhos da Vida” (no original “L’ Amore in città”) e agrupava alguns cineastas, cada um deles assinando um episódio, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Alberto Lattuada, Carlo Lizzan, Francesco Maselli, Dino Risi e Cesare Zavattini. Lattuada e Dino Risi afastaram-se um pouco da ortodoxia do neo-realismo, optando por uma crítica de costumes de raiz satírica da realidade italiana do pós- guerra que nos deu exemplos magníficos de obras inesquecíveis. No caso de Dino Risi, ele foi um cineasta magnífico, um retratista implacável, um aguarelista inspirado na descrição de um tempo, de uma sociedade, de um clima social.
Dino Risi nasceu a 23 de Dezembro de 1916, em Milão, Lombardia, Itália, e faleceu a 7 Junho de 2008, em Roma, Lázio, igualmente em Itália. Ele próprio escreveu que “nascera do ano da Revolução Russa e no ano do primeiro “Giro d’Italia.” Agora que desapareceu, aos 91 anos, foi considerado unanimemente como “o pai da comédia de costumes italiana”. Mas, durante muitos anos, foi geralmente subestimado, considerado “menor”, o que parece paradoxal para um cineasta que conta, na sua vasta filmografia, algumas obras-primas do cinema italiano, simultaneamente de uma qualidade cinematográfica e interesse sociológico ímpares e grandes sucessos de público. “A Ultrapassagem”, “Uma Vida Difícil”, “Os Monstros” ou “Perfume de Mulher” bastavam para o colocar no panteão da cinematografia transalpina. 
Apareceu no cinema, em 1941, um pouco por acaso. Um dia, falando com o amigo Alberto Lattuada, que preparava o novo filme de Mario Soldati, “Piccolo mondo antico”, foi-lhe proposto um lugar na equipa técnica, que aceitou mais por desporto do que por gosto. A seguir esteve como assistente de realização do próprio Alberto Lattuada, em "Giacomo l'idealista" (1942). Mas estudava medicina, especializa-se em psiquiatria e começa a trabalhar como interno no hospital de Pádua, e depois no hospício de Voghera. Tudo indicava que nascia mais um médico, mas afinal o bichinho do cinema fez estragos. Com a guerra, resolve partir para a Suíça, onde conhece a futura mulher, tira um curso de encenação com Jaques Feyder, e faz amizades com o encenador e dramaturgo Giorgio Strehler.
De regresso a Itália, finda a guerra, volta a Milão em 1945. Começa a escrever contos e textos para jornais e revistas, e críticas de cinema para “Milano Sera”, nessa altura dirigido por Elio Vittorino e Alfonso Gatto. Gigi Martello, um produtor, convida então Dino Risi a realizar uma série de cerca de vinte curtas e médias-metragens documentais, o que o ocupa entre os anos de 46 e 50. Um desses trabalhos, talvez o mais citado, é "Buio in sala", que é vendido a Carlo Ponti, que o chama para Roma, onde se instala, e começa a escrever, com outros, um argumento para uma diva da altura, Silvana Mangano. O filme será “Anna”, que Lattuada dirige, e que se afirma como um dos maiores êxitos de sempre do cinema italiano. Dino Risi via abrir-se a porta da grande indústria. Em 1951, filma "Vacanze col gangster", tenta rodar, em 1953, um filme na produtora brasileira, de São Paulo, “Vera Cruz”, sem sucesso. Depois, com Sophia Loren e Vittorio de Sica, dirige o seu primeiro filme de fôlego, "O Signo de Vénus", e o título de encerramento de uma trilogia iniciada por Luigi Comencini e que fez furor na época, "Pão, amor e..." (ambos em 1955). "Pobres mas Belas" (Poveri ma belli), interpretado por Marisa Allasio, em 1956, é um relativo triunfo. O neo-realismo tinha esgotado as suas fórmulas e Dino Risi, com alguns outros realizadores e argumentistas, retomam a fórmula, mas sob o prisma de comédia de costumes. Entre 1960 e 1961, realiza “Il Mattatore”, com Vittorio Gassman, que prenuncia uma vasta e prodigiosa colaboração entre actor e cineasta, e depois "Un Amore a Roma" e "A Porte Chiuse", duas obras dramáticas sem grande sucesso, a que se seguem duas das suas obras maiores, “Una Vita Difficile” e "Il Sorpasso". Este último, “A Ultrapassagem”, será possivelmente, a sua grande obra. Conta-se que na noite da estreia, ele e o produtor Mario Cecchi Gori esperaram no exterior do cinema as reacções do público. Desgostoso pelo facto de haver muito poucos espectadores, Dino Risi regressou mais cedo a casa. Três horas depois diziam-lhe pelo telefone que fora um sucesso, e no dia seguinte a sala estava esgotada. Dino Risi tornara-se numa nova lenda viva do cinema italiano. “Fiz mais de cinquenta filmes, e estive sempre seguro de que um deles poderia vir a ser uma obra-prima”. "”Profumo di Donna”, de 1974, reúne Gassman e Agostina Belli, e com ele recebe o César de melhor filme estrangeiro lançado nesse ano em França. Mais tarde, servirá de base a uma nova versão, norte-americana, assinada por Martin Brest, com Al Pacino no protagonista.
Em 1993, o Festival de Cannes reconhece a obra deste cineasta brilhante, exibindo um ciclo com quinze das suas obras mais reputadas. Em 2002, recebe um Leão de Ouro pelo conjunto da sua carreira em Veneza (2002). Em 2004, no dia 2 de Julho, durante o qual se celebra a implantação da República, o presidente Carlo Azeglio Ciampi condecorou Dino Risi com a ordem “Cavaliere di Gran Croce”.
Quando Dino Risi morreu, Sofia Loren foi a voz de quantos o conheciam bem: "É uma grande perda para o cinema italiano". "Fazia uma comédia de costumes italiana, mas que na realidade era universal", disse o crítico italiano Valerio Caprara, lembrando que Risi "jamais se prendeu às exigências estéticas da moda". Era "um Billy Wilder à italiana", afirmou o jornal “La Repubblica”, com alguma razão.

FILMOGRAFIA

Como realizador (titulos essenciais): 1946: I Bersaglieri della Signora (documentário); 1953: L’ Amore in Città (Retalhos da Vida) (com Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Alberto Lattuada, Carlo Lizzani, Francesco Maselli, e Cesare Zavattini; 1955: Il Segno di Venere ou The Sign of Venus (O Signo de Vénus); 1955: Pane, Amore e… (Pão, Amor e…); 1957: Poveri ma Belli (Os Galãs do Bairro); La Nonna Sabella ou L’ Impossible Isabelle ou Oh! Sabella (A Avó Isabel); Belle ma Povere (Belas mas Pobres); 1959: Il Vedovo (O Viúvo Alegre); Venezia, la luna e tu (Vebeza, a Lua e Tu); 1960: Il Mattatore (O Castigador) ; 1961: A porte chiuse (À Porta Fechada); 1961: Una Vita difficile (Uma Vida Dificil); 1962: Il Sorpasso (A Ultrapassagem); 1963: Il Successo (O Sucesso); La Marcia su Roma; Il Giovedi (Dia de Ferias); I Mostri (Os Monstros); 1965: Il Gaucho (O Gaucho) ; 1968: Il Profeta (O Profeta); 1969: Vedo Nudo (Vejo Tudo Nu); 1971: La Moglie del Prete (A Mulher do Padre); Noi donne siamo fatte così (Nós, as Mulheres somos Assim); In Nome del Popolo Italiano (Em Nome do Povo Italiano); 1973: Mordi e Fuggi (Fim de Semana Ilegítimo); Sessomatto (Sexo Louco); 1974: Profumo di Donna (Perfume de Mulher); 1976: Telefoni Bianchi; 1977: Anima Persa (Almas Perdidas); La Stanza del vescovo ou La Chambre de l'évèque ou The Bishop's Bedroom ou The Bishop's Room (A Alcova do Bispo); 1977: I Nuovi Mostri (Os Novos Monstros): Mario Monicelli ("Autostop" e "First Aid"), Dino Risi ("Con i saluti degli amici", "Tantum ergo", "Pornodiva", "Mammina mammona" e "Senza parole"), Ettore Scola ("L'uccellino della Val Padana", "Il sospetto", "Hostaria", "Come una regina", "Cittadino esemplare", "Sequestro di persona cara" e "Elogio funebre"); 1978: Primo Amore (Nostalgia do Amor); 1979: Caro Papà ou Cher papa ou Dear Father ou Dear Papa (Caro Papá); 1981: Fantasma d'Amore ou Fantôme d'Amour (Fantasma de Amor); 1987: Teresa.

SESSÃO 14 - 3 DE MAIO DE 2016



GANGSTERS FALHADOS (1958)

Alexandre Marius Jacob, conhecido apenas por Marius Jacob (1879 –1954) foi um célebre francês, ladrão de inspiração anarquista, que parece ter estado na origem da criação de Maurice Leblanc para a sua personagem Arsène Lupin. Marius Jacob é uma lenda no campo da criminalidade francesa. Ardiloso, inteligente, roubando aos ricos para dar aos pobres, estribando-se em conceitos políticos para as suas façanhas, mantinha um humor e irreverência inegáveis. Conta-se que um dia assaltou uma casa e descobriu que esta era pertença do escritor Pierre Loti. Marius Jacob voltou a colocar tudo nos seus lugares e deixou uma nota: “Assaltei por engano a sua casa. Um escritor que vive da sua escrita merece um salário.” Assinava Attila. E deixava um PS: “junto 10 francos para substituir o vidro partido”. Foi muito comentado um assalto seu a uma ourivesaria, utilizando a técnica do chapéu-de-chuva. Julga-se que terá sido esta personagem a estar na base de um filme de Jules Dassin, de 1955, “Du rififi chez les hommes”, um clássico dos “filmes de roubo”, que por sua vez terá servido de pretexto para, entre muitas outras obras, a excelente paródia que Mario Monicelli realizou em 1958, “Gangsters Falhados” (I Soliti Ignoti).
O filme reúne um conjunto de magníficos actores que se juntam enquanto personagens que alimentam a esperança de praticar um grande roubo num banco, ou numa loja de penhores onde existe um apetecível cofre-forte carregado de jóias. São arraia-miúda do submundo do crime. Tudo começa pelo roubo frustrado de um carro. Apanhado pela polícia, o malogrado assaltante quer servir-se de um embuste para sair da prisão e dar o grande golpe. Para isso precisa de uma “ovelha”, designação dada a quem estiver pelos ajustes de, contra uma boa indemnização, se apresentar às autoridades como autor do assalto, libertando o verdadeiro culpado. A procura do tipo certo para este “negócio” é desde logo um dos grandes momentos do filme. Num bairro suburbano de Roma, perguntam a um grupo de miúdos se conhecem o Mário. “Aqui há centenas de Mários!” responde um dos inquiridos. “Mas este é ladrão”, acrescenta quem procura. “Continua a haver centenas”, conclui o jovem que continua a jogar à bola.
Depois de várias peripécias, organiza-se um gang de pequenos escroques. Peppe (Vittorio Gassman) é um pugilista manhoso, que aceita o papel de “ovelha” para sacar a Cosimo (Memmo Carotenuto) as informações sobre o golpe que está a preparar. Tiberio (Marcello Mastroianni) é um fotógrafo sem máquina, que empenhou, que tem a mulher presa por contrabando de cigarros (parece a dupla de “Ontem, Hoje e Amanhã”, que surgirá pouco anos depois) e vive com um bebé ao colo. Mario Angeletti (Renato Salvatori) não tem eira nem beira e catrapisca a irmã do siciliano Ferribotte (Tiberio Murgia), que vela pela castidade de Carmelina (Claudia Cardinale) com denodado rigor. Entre outros mais, surge ainda Dante Cruciani (Totò), especialista em arrombar cofres. Um verdadeiro artista de prestígio assegurado que “nunca se encontra no local do crime quando este acontece”.
Para se entrar no andar do banco, é necessário antes uma penosa peregrinação por telhados e terraços e aturados estudos à distância. Depois, urge perfurar uma parede e tudo se julga sob controlo, mas pode sempre surgir o imprevisto. É o caso, que não se revela para não se perder o inesperado.
"Gangsters Falhados" é uma das mais conseguidas obras de Mario Monicelli e uma das mais características comédias italianas dos anos 50. Com uma sólida base de análise social, partindo de um inteligente e hábil argumento, cozinhado a várias mãos (Agenore Incrocci, Furio Scarpelli, Suso Cecchi D'Amico e do próprio Mario Monicelli, ao que consta partindo de um conto de Italo Calvino, "Furto in una pasticceria", o que não aparece creditado no genérico), “I Soliti Ignoti” é um retrato de uma sociedade saída da guerra e de uma traumatizante passagem pelos conturbados tempos do fascismo italiano. A Itália percorria já o que para alguns era o período dourado do “milagre económico” que deixava, todavia, na miséria largas fatias da população que se entregava à prática da pequena delinquência e a uma economia paralela, procurando assim sobreviver à exclusão social. Os ambientes humanos e os cenários urbanos do filme mostram isso mesmo e a tonalidade humorística não exclui a crítica (muito pelo contrário, acentua-a). A estrutura narrativa está solidamente implantada, Monicelli tem o dom de desenvolver sabiamente os apontamentos satíricos e o desenho das personagens, algumas inesquecíveis, representadas por um elenco onde sobressaem os nomes de Vittorio Gassman, Renato Salvatori, Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Memmo Carotenuto, Carla Gravina, Tiberio Murgia, Carlo Pisacane, além de Totó, um dos maiores e dos mais originais actores de sempre no campo da comédia.  



GANGSTERS FALHADOS
Título original: I soliti ignoti
Realização: Mario Monicelli (Itália, 1958); Argumento: Agenore Incrocci, Furio Scarpelli, Suso Cecchi D'Amico, Mario Monicelli, drgundo conto de Italo Calvino ("Furto in una pasticceria"); Produção: Franco Cristaldi; Música: Piero Umiliani; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Adriana Novelli; Design de produção: Piero Gherardi; Decoração: Vito Anzalone; Guarda-roupa: Piero Gherardi; Maquilhagem: Romolo de Martino; Direcção de Produção: Gino Millozza, Nicolò Pomilia; Assistente de realização: Mario Maffei; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Oscar Di Santo, Luigi Puri; Companhias de produção:Cinecittà (Stabilimenti Cinematografici, Lux Film, Vides Cinematografica; Intérpretes: Vittorio Gassman (Peppe il pantera), Renato Salvatori (Mario Angeletti), Memmo Carotenuto (Cosimo), Rossana Rory (Norma), Carla Gravina (Nicoletta), Marcello Mastroianni (Tiberio), Totò (Dante Cruciani), Tiberio Murgia (Michele, dito o Ferribotte), Claudia Cardinale (Carmelina), Gina Rovere (Teresa), Gina Amendola (Mario), Elvira Tonelli (Assunta), Elena Fabrizi (Signora Ada), Pasquale Misiano (Massimo), Renato Terra (Eladio), Aldo Trifiletti (Fernando), Nino Marchetti (Luigi), Mario De Simon, Edith Bruck, Franco Carli, Mario Feliciani, Ida Masetti, Mimmo Poli, Lisa Romey, Amerigo Santarelli, Gustavo Serena, Roberto Spiombi, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal: Cristald Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Novembro de 1959.  


A COMÉDIA À ITALIANA
Terá sido Mario Monicelli, um dos nomes mais representativos da comédia à italiana, quem a definiu nestes termos: “trata em termos cómicos, divertidos, irónicos, humorísticos argumentos que são muitas vezes dramáticos. É isso que distingue a comédia à italiana de todas as outras comédias”. Surgida no prolongamento do neorrealismo, os seus títulos mais significativos aparecem entre meados dos anos 50 e finais da década de 70 do século passado. Muito revelador é o facto de esta comédia surgir algum tempo depois de terminada a II Guerra Mundial, depois da Itália começar a ultrapassar o desastre económico, político e social que a guerra provocara no seu tecido, numa altura em que o plano Marshall começava a dar alguns resultados, em que o boom económico explodia, em que a burguesia nacional de reorganiza, bem assim como as forças mais conservadoras. Tudo isso acarretou consequências diversas, umas positivas, outras negativas. Entre estas manifestou-se uma corrupção galopante, o surgimento de uma burguesia endinheirada de novos-ricos, uma desigualdade social mais radicalizada, uma progressiva descredibilização dos valores e uma ofensiva valorização do dinheiro dominando tudo e todos. As instituições políticas, religiosas, jurídicas (e tantas outras) são asperamente criticadas. Simultaneamente, ao lado do dinheiro que tudo compra, surge um hedonismo patológico, onde o sexo ocupa destacado lugar.
Tendo como base estes temas, a comédia italiana exprime-se em dois tempos e dois níveis. Uma, mais amável e menos empenhada, é vista como um “neorrealismo rosa”. Outra, intelectualmente mais incisiva e culturalmente interventiva, revela um importante conjunto de cineastas como Dino Risi, Pietro Germi, Mario Monicelli, Luigi Comencini, Vittorio De Sica, Ettore Scola, Steno, Pasquale Festa Campanile, Antonio Pietrangeli, Lina Wertmüller, Luigi Zampa, Luigi Magni, Nanni Loy, Camillo Mastrocinque, Luciano Salce, Sergio Corbucci e alguns argumentistas de muito bom nível, basta citar Steno, Age e Scarpelli, Rodolfo Sonego, Sergio Amidei, Piero De Bernardi, Leo Benvenuti, Ettore Scola ou Suso Cecchi D'Amico.
Cronologicamente, poderemos referir algumas obras essenciais, deixando muitas outras de fora, dado que o período foi extremamente fértil: “Guardie e ladri”, 1951, de Mario Monicelli e Steno; “I soliti ignoti”, 1958, de Mario Monicelli; “La grande guerra”, 1959, de Mario Monicelli; “Il vedovo”, 1959, de Dino Risi; “Tutti a casa”, 1960, de Luigi Comencini; “Il mattatore”, 1960, de Dino Risi; “Divorzio all'italiana”, 1961, de Pietro Germi; “Una vita difficile”, 1961, de Dino Risi; “L'onorata società”, 1961, de Riccardo Pazzaglia; “A cavallo della tigre”, 1961, de Luigi Comencini; “I due marescialli”, 1961, de Sergio Corbucci; “Il sorpasso”, 1962, de Dino Risi; “Ieri, oggi, domani”, 1963, de Vittorio De Sica; “Il boom”, 1963, de Vittorio De Sica; “I compagni”, 1963, de Mario Monicelli; “Una storia moderna: l'ape regina”, 1963, de Marco Ferreri; “I mostri”, 1963, de Dino Risi; “Sedotta e abbandonata”, 1964, de Pietro Germi; “La donna scimmia”, 1964, de Marco Ferreri; “Matrimonio all'italiana”, 1964, de Vittorio De Sica; “Signore & signori”, 1965, de Pietro Germi; “L'armata Brancaleone”, 1966, de Mario Monicelli; “La ragazza con la pistola”, 1968, de Mario Monicelli; “Il medico della mutua”, 1968, de Luigi Zampa; “Riusciranno i nostri eroi a ritrovare l'amico misteriosamente scomparso in Africa?”, 1968, de Ettore Scola; “Il commissario Pepe”, 1969, de Ettore Scola; “Nell'anno del Signore”, 1969, de Luigi Magni; “Dramma della gelosia - Tutti i particolari in cronaca”, 1970, de Ettore Scola; “Brancaleone alle crociate”, 1970, de Mario Monicelli; “In nome del popolo italiano”, 1971, de Dino Risi; “Mimì metallurgico ferito nell'onore”, 1972, de Lina Wertmüller; “Detenuto in attesa de giudizio”, 1972, de Nanni Loy; “Alfredo Alfredo”, 1972, de Pietro Germi; “Lo scopone scientifico”, 1972 de Luigi Comencini; “Vogliamo i colonnelli”, 1973, de Mario Monicelli; “Pane e cioccolata”, 1973, de Franco Brusati; “Film d'amore e d'anarchia”, 1973, de Lina Wertmüller; “Travolti da un insolito destino nell'azzurro mare d'agosto”, 1974 de Lina Wertmüller; “C'eravamo tanto amati”, 1974, de Ettore Scola; “Profumo de donna”, 1974, de Dino Risi; “Romanzo popolare”, 1974, de Mario Monicelli; “Finché c'è guerra c'è speranza”, 1974, de Alberto Sordi; “La poliziotta”, 1974, de Steno; “Amici miei”, 1975, de Mario Monicelli; “La mazurka del barone, della santa e del fico fiorone”, 1975, de Pupi Avati; “Pasqualino Settebellezze”, 1975, de Lina Wertmüller; “Signore e signori, buonanotte”, 1976, de Luigi Comencini, Nanni Loy, Luigi Magni, Mario Monicelli, Ettore Scola; “Brutti, sporchi e cattivi”, 1976, de Ettore Scola; “Una giornata particolare”, 1977, de Ettore Scola; “La stanza del vescovo”, 1977, de Dino Risi; “I nuovi mostri”, 1977, de Mario Monicelli, Dino Risi, Ettore Scola; “Il gatto”, 1977, de Luigi Comencini; “In nome del Papa Re”, 1977, de Luigi Magni; “La terrazza”, 1980, de Ettore Scola; “Amici miei atto II”, 1982, de Mario Monicelli.

Falando dos actores, a Itália tem um rei de prestígio inabalável, no campo do cinema, que vem dos anos 30 e prolonga a sua glória até finais da década de 60: Totó. O seu percurso faz-se um pouco à margem de todas as correntes, é um caminho individual que, todavia, se cruza obviamente com a comédia italiana. Mas, no período restrito a que corresponde à idade de ouro da comédia italiana, muitos grandes actores se notabilizaram, uns mais precisamente no campo do humor, outros incorporando essa faceta em filmografias muito mais abrangentes, indo do drama à comédia. São eles, no primeiro caso, Alberto Sordi, Ugo Tognazzi, Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni, Nino Manfredi, Sylvia Koscina, Laura Antonelli, Agostina Belli, Renato Salvatori, Mario Carotenuto, Memmo Carotenuto, Tina Pica, Marisa Merlini, Leopoldo Trieste, Franco Franchi e Ciccio Ingrassia, ao lado de, no segundo caso, Sophia Loren, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Monica Vitti, Vittorio De Sica, Gino Cervi, Gian Maria Volontè, Enrico Maria Salerno, Salvo Randone, Walter Chiari, Franca Valeri, Stefania Sandrelli, Gastone Moschin, Carla Gravina, Adolfo Celi, Giancarlo Giannini, Michele Placido, Stefano Satta Flores, Mariangela Melato, e tantos outros. De resto, mesmo depois dos anos 60, surgiram novos actores, muitos deles de recursos mais limitados, que mantiveram a comédia entre os sucessos populares do cinema italiano. Alguns exemplos: Paolo Villaggio, Gigi Proietti, Lino Banfi, Renzo Montagnani, Gianfranco D'Angelo, Edwige Fenech, Gloria Guida, Alvaro Vitali, Bombolo ou Enzo Cannavale, sobretudo no campo da comédia erótica. Mas uma nova geração de cineastas renovou o campo da comédia nos últimos tempos, com excelentes resultados, casos de Nanni Moretti, Roberto Benigni, Carlo Verdone, Massimo Troisi, Francesco Nuti, Maurizio Nichetti, Alessandro Benvenuti, Gabriele Salvatores, Paolo Virzì, Francesca Archibugi, Daniele Luchetti e Silvio Soldini, ou ainda Leonardo Pieraccioni, Vincenzo Salemme e Giovanni Veronesi. Em Portugal pouco cinema italiano recente se vê. 

SESSÃO 13 - 26 DE ABRIL DE 2016


POLÍCIAS E LADRÕES (1951)

“Guardie e Ladri” data de 1951 e surge assinado por Mario Monicelli e Steno, uma dupla de realizadores muito representativa da chamada comédia italiana, sobretudo no seu lado mais popular, o que fica bem demonstrado nesta obra interpretada de forma magistral por Totò e Aldo Fabrizi. Será de sublinhar que nesta época, inícios da década de 50, o neorrealismo tinha ainda uma forte presença em Itália e que, apesar do seu registo em tons de comédia, esta é obviamente uma obra que se apresenta como legítima herdeira desse movimento estético que teve no cinema um importante desenvolvimento.
Esta é a história de dois pobres diabos, dois tipos populares, representando cada um lados opostos da lei. Ferdinando Esposito (Totò) é um vigarista de pequeno calibre que sobrevive, ele e a família, de expedientes diversos, mas quase todos à margem da lei. Vamos encontrá-lo, juntamente com o seu cúmplice, Amilcare (Aldo Giuffrè), nas ruínas do Coliseu de Roma, “descobrindo” uma moeda antiga e enganando um turista americano, um tal Mr. Locuzzo, que é igualmente o presidente de uma comissão de caridade americana, o que irá dar origem a um desaconselhável reencontro quando Esposito se candidata, juntamente com um conjunto de “filhos” de ocasião, à ajuda americana. Mr. Locuzzo reconhece o aldrabão, denuncia-o às autoridades, e inicia-se então uma inusitada perseguição, com o anafado agente da polícia Lorenzo Bottoni (Aldo Fabrizi) a correr atrás do burlão. A caçada parece nunca mais acabar, mas o fôlego dos corredores sim, o que permite um momento de pausa e reflexão conjunta.
Finalmente, Bottoni acaba por dar voz de prisão ao delinquente, mas este escapa, o polícia é castigado e suspenso das suas funções, arriscando-se a perder o emprego. À paisana, sem farda nem arma, Bottoni jura encontrar o fugidio Esposito. Vai a casa deste, conhece a família, sem se dar a conhecer, e a partir daí a empatia entre todos é evidente. Afinal, polícia e ladrão são resultado de um mesmo povo, de uma mesma sociedade, de mesmas questões sociais.


Apesar de colocados de lados opostos de uma realidade social, Esposito e Bottoni são dois exemplos muito semelhantes saídos de uma certa sociedade. Ambos sobrevivem miseravelmente, um servindo a ordem estabelecida, o outro procurando subvertê-la no dia-a-dia. Nenhum deles tem consciência política, ambos funcionam pelo pragmatismo das situações. Ambos irão perceber que existe muito mais a uni-los do que aquilo que os separa. Uma solidariedade possível vai estabelecer-se entre os dois (e as famílias de ambos), sem que, todavia, a estrutura da sociedade seja posta em causa. Esposito e Bottoni são já amigos, mas um irá prender o outro e enviá-lo para a cadeia e quando Esposito pressente o drama e a dúvida no rosto do polícia será ele o primeiro a decidir entregar-se. Ambos aceitam a ordem estabelecida. “Guardie e Ladri” mostra a realidade, não procura apontar caminhos. 
Este título da filmografia conjunta de Steno e Monicelli esteve a concurso da quinta edição do Festival de Cannes, onde ganhou o prémio para Melhor Argumento, sendo ainda distinguido Totò pela sua interpretação. Em 1952, Totò, pela sua actuação nesta obra, recebeu igualmente o Prémio de Melhor Actor, atribuído pelo Sindicato dos Críticos de Cinema Italianos. Um actor que até aí não era visto com grande interesse pelos intelectuais italianos ganhava as suas credenciais.
Curiosamente este filme era para ser dirigido por Luigi Zampa, que declinou o projecto por o julgar demasiado arriscado em termos de censura (nessa versão Peppino De Filippo seria o polícia e Anna Magnani a sua mulher). Zampa já tinha tido alguns problemas com filmes anteriores, e não queria voltar a envolver-se com os censores. Tinha razão, dado que a versão final de “Polícias e Ladrões” iria desencadear reacções violentas por parte das autoridades que não viam com bons olhos esta familiaridade de um polícia e um ladrão. Quase durante um ano, o filme lutou com a censura até obter ordem de soltura. Foi um sucesso imediato junto do público italiano. O que confere justiça à realização discreta mas eficaz, ao excelente argumento e à magnífica interpretação dos dois protagonistas, que erguem personagens de uma densidade humana indesmentível.
Finalmente, conte-se uma curiosidade ligada à rodagem: durante a perseguição de Fabrizi a Totò, pelas ruas da cidade, quando o polícia grita “Ladrão! Prendam-no!”, dois agentes da autoridade autêntico, tomaram o grito por verdadeiro e resolveram pegar nas armas e atirar para o ar, para intimidar o ladrão. Morto de medo, Totò pára, esperando que a situação se esclareça. Tudo acabou, rezam as crónicas, com autógrafos de Fabrizi e Totò para os “vero carabinieri”.


POLÍCIAS E LADRÕES
Título original: Guardie e ladri
Realização: Mario Monicelli e Steno (Itália, 1951); Argumento: Vitaliano Brancati, Aldo Fabrizi, Ennio Flaiano, Ruggero Maccari, Mario Monicell, Steno, Piero Tellini; Produção: Dino De Laurentiis, Carlo Ponti; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): Mario Bava; Montagem: Franco Fraticelli, Adriana Novelli; Design de produção: Flavio Mogherini; Decoração: Flavio Mogherini; Direcção de Produção:Nicolò Pomilia, Bruno Todini; Assistentes de realização: Rudy Bauer, Mario Mariani; Som: Aldo Calpini, Biagio Fiorelli; Companhias de produção: De Laurentiis, Golden Film, Lux Film, Ponti; Intérpretes: Aldo Fabrizi (Lorenzo Bottoni), Totò (Ferdinando Esposito), Ave Ninchi (Giovanna Bottoni), Pina (Donata Esposito), William Tubbs (Mr. Locuzzo, o turista), Rossana Podestà (Liliana Bottoni), Gino Leurini (Alfredo), Aldo Giuffrè (Amilcare), Carlo Delle Piane (Libero Esposito), Ernesto Almirante, Paolo Modugno, Pietro Carloni, Mario Castellani, Armando Guarnieri, Ciro Berardi, Giulio Calì, Gino Scotti, Luciano Bonanni, Rocco D'Assunta, Aldo Alimonti, Riccardo Antolini, Alida Cappellini, Ettore Jannetti, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal: Estevez Seven; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 21 de Novembro de 1952.


TOTÒ ou ANTONIO DE CURTIS (1898-1967)
Totò é considerado unanimemente o maior actor cómico italiano e, seguramente, um dos maiores a nível mundial. Nascido a 15 de Fevereiro de 1898, em Nápoles, Itália, Antonio Clemente era filho de Anna Clemente e de pai desconhecido. Mas, segundo o próprio actor, e mais tarde reconhecido legalmente, o seu pai foi Giuseppe De Curtis, filho do importante marquês De Curtis, que, todavia, se terá sempre oposto aos amores do filho com a bela, mas muito popular Anna, impedindo o casamento.
Exuberante e pouco dado aos estudos, Antonio Clemente cedo deixou a escola, passou por vários empregos até se aproximar do teatro, sua grande paixão. Terá sido ainda muito jovem que, numa mais acalorada luta com alguém da sua idade, terá levado um murro que lhe desviou para sempre o septo nasal. Entre 1913 e 1914 estreia-se no teatro, com o pseudónimo de Clerment. Entretanto, durante a I Guerra Mundial, oferece-se como voluntário, mas, uma vez na frente, finge um ataque de coração que o leva para a rectaguarda. Finda a guerra, regressa ao teatro, passa por companhias onde trava conhecimento com Eduardo e Peppino De Filippo ou Cesare Bixio. Por entre números de variedades e canções, Antonio adquire certa notoriedade. Em 1927, integra a companhia de operetas e revistas Achille Maresca, realizando grandes tournées. A crítica começa a referenciá-lo como o “cómico grotesco” que se destaca nos palcos italianos. Estreia-se como o nome de Totò, em Padova, na peça “Madama Follia”. Por essa altura, 1928, o pai, o já marquês Giuseppe De Curtis, reconhece legalmente a paternidade, algo que foi muito importante para Antonio Clemente, que passa a assinar Antonio De Curtis. Mas, na verdade, a sua designação completa passa a ser (e leia-se em italiano que tem mais sabor): Antonio Griffo Focas Flavio Angelo, Ducas Comneno Porfirogenito Gagliardi De Curtis di Bisanzio, Altezza Imperiale, Conte Palatino, Cavaliere del Sacro Romano Impero, esarca di Ravenna, duca di Macedonia e Illiria, principe di Costantinopoli, di Cicilia, di Tessaglia, di Ponto, di Moldavia, di Dardania, del Peloponneso, conte di Cipro e di Epiro, conte e duca di Drivasto e di Duraz.
Totò era já um actor de reputação consolidada no teatro, onde se notavam as características do seu humor muito próprio. Era conhecido como “marioneta desarticulada”. Apaixona-se por uma cantora, Liliana Castagnola, com quem mantém uma ligação amorosa, que acaba por se suicidar. Anos mais tarde, será Diana Bandini Lucchesini Rogliani, espectadora de uma actuação sua no teatro, que se apaixona por Totò. Vivem juntos, têm uma filha, em 1933, casam em 1935. Divorciam-se em 1940. Entretanto, Totò cria a sua própria companhia entre 1932 e 1933 e vive um período de grande glória nos palcos italianos. Em 1937, interpreta "Fermo con le mani!", de Gero Zambuto, a que se segue " Animali Pazzi", de Carlo Ludovico Bragaglia. Mas a carreira de Totò no cinema leva o seu tempo a arrancar. Apenas em 1947, com “I Due Orfanelli", de Mario Mattòli, atinge a glória, que se irá repercutir por uma filmografia de mais de uma centena de títulos.
A sua obra é sobretudo popular. Os seus filmes eram essencialmente para todo o público, mas direccionados a camadas mais plebeias, muito embora as suas origens aristocratas. Mas a faceta napolitana predominou sempre. Raras vezes foi dirigido por grandes cineastas (o que só aconteceu no final da carreira, quando finalmente se reconheceu a grandeza e a originalidade da sua arte), o que nem sempre funcionou mal. Os técnicos competentes permitiram a Totò improvisar, irradiar o seu talento, desenvolver personagens, impor um estilo próprio. Rodava meia dúzia de filmes por ano, quase todos paródias a grandes sucessos cinematográficos internacionais (basta consultar a filmografia em anexo, para se perceber isso) e multiplicava-se em figuras que mantinham uma forma muito particular de actuação. A sua linguagem (o seu linguajar melhor dizendo) era incomparável e o gesticular excessivo invulgarmente expressivo. Recriando personalidades muito populares, Totò nunca deixou, porém, de ser o príncipe da comédia. 


Filmografia essencial / como actor (de um total de cerca de 108 títulos): 1935: Fermo con le mani !, de Gero Zambuto; 1937: Animali pazzi, de Carlo Ludovico Bragaglia; 1940: San Giovanni decollato (O Homem dos Sete Ofícios), de Amleto Palermi e Giorgio Bianchi; 1945: Il Ratto delle sabine (Totó, Professor de Trombone), de Mario Bonnard; 1947: I due orfanelli (Totó, Perdeu a Cabeça), de Mario Mattoli; 1948: Totò al giro de Italia (Totó, Ás do Pedal), de Mario Mattoli; 1948: Fifa e arena (Mulheres, Música e Toiros), de Mario Mattoli; 1949: L'Imperatore di Capri (Totó, Imperador de Capri), de Luigi Comencini; Totò cerca casa (Totó Procura Casa), de Mario Monicelli e Steno; Totò le Moko (Totó Desceu à Cidade), de Carlo Ludovico Bragagli; 1950: Napoli milionaria (Nápoles Milionária), de Eduardo De Filippo; Totò sceicco (Totó Sheik), de Mario Mattoli; Le sei mogli di Barbablù (Totó e o Barba Azul), de Carlo Ludovico Bragaglia; 1950: Totò cerca moglie (Totó Procura Mulher), de Carlo Ludovico Bragaglia; 1950: Totò Tarzan (Totó Tarzan), de Mario Mattoli; 1951: Guardie e ladri (Policias e Ladrões), de Mario Monicelli e Steno; Totò e i re di Roma, de Mario Monicelli e Steno; Totò terzo uomo (Totó Terceiro Homem), de Mario Mattoli; 1952: Totò e le donne (Toto Entre as Mulheres), de Mario Monicelli e Steno; Totò a colori (Totó a Cores), de Steno; 1953: Il più comico spettacolo del mondo (O Mais Cómico Espectáculo do Mundo), de Mario Mattoli; Un Turco napoletano (O Turco Napolitano), de Mario Mattoli; Totò, Peppino e una di quelle (Novo Dia), de Aldo Fabrizi; 1954: L'Oro di Napoli (O Ouro de Nápoles), de Vittorio De Sica, episódio “Il Guappo”; Dov'è la libertà ? (Onde Está a Liberdade?), de Roberto Rossellini; Miseria e nobiltà (Totó Rico e Pobre), de Mario Mattoli; Tempi nostril (Os Nossos Tempos), de Alessandro Blasetti e Paul Paviot; Totò cerca pace (Totó Procura Paz), de Mario Mattoli; 1955: Siamo uomini o caporali (Somos Homens ou Quê?), de Camillo Mastrocinque; Totò e Carolina (Totò e Carolina), de Mario Monicelli; 1956: La Banda degli onesti (Totó e as Notas Falsas), de Camillo Mastrocinque; Totò, Peppino e i… fuorilegge (Totó Fora da Lei), de Camillo Mastrocinque; Totò, Peppino e... la malafemmina (Os Tios da Província), de Camillo Mastrocinque; 1958: La Legge è legge (Totó, Fernandel e a Lei), de Christian-Jaque; I Soliti ignoti (Gangsters Falhados), de Mario Monicelli; Totò nella luna (Totó na Lua), de Steno; Totò a Parigi (Totó em Paris), de Camillo Mastrocinque; 1959: I Tartassati (Totó Contribuinte), de Steno; Arrangiatevi! (Casa Nova...Vida Nova), de Mauro Bolognini; La Cambiale (A Letra), de Camillo Mastrocinque; Totò, Eva e il pennello proibito (Totó em Madrid), de Steno; 1960: Totò, Fabrizi e i giovani de oggi (Totó, Fabrizi e os Meninos de Hoje), de Mario Mattoli; 1960: Chi si ferma è perduto (Totó Torce o Pepino), de Sergio Corbucci; Risate di gioia (O Ladrão Apaixonado), de Mario Monicelli; Signori si nasce (Totó Fidalgo), de Mario Mattoli; 1961: Totò, Peppino e... la dolce vita (Totò e a Doce Vida), de Sergio Corbucci; I due marescialli (Os Dois Carabineiros), de Sergio Corbucci; Sua Eccellenza si fermò a mangiare, de Mario Mattoli; Tototruffa '62 (Totó Vigarista), de Camillo Mastrocinque; 1962: I due colonnelli, de Steno; 1962: Totò contro Maciste (Totó Contra Maciste), de Fernando Cerchio; Totò diabolicus (Totó Diabólico), de Steno; Totò di notte n. 1, de Mario Amendola; Totò e Peppino divisi a Berlino (Totó e Peppino em Berlim), de Giorgio Bianchi; 1963: Il monaco di Monza, de Sergio Corbucci; Gli onorevoli; de Sergio Corbucci; 1963: Totò contro i 4 (Totó Contra Quatro), de Steno; Totò e Cleopatra (Totó e Cleópatra), de Fernando Cerchio; Totò sexy, de Mario Amendola; 1964: Le Belle famiglie, de Ugo Gregoretti; Che fine ha fatto Totò baby?, de Ottavio Alessi; Totò contro il pirata nero, de Fernando Cerchio; Totò de Arabia (Totó da Arábia), de José Antonio de la Loma; 1965: Gli amanti latini, de Mario Costa; La Mandragola (Marido Velho, Mulher Nova) de Alberto Lattuada; Rita, la figlia Americana, de Piero Vivarelli; 1966: Uccellacci e uccellini (Passarinhos e Passarões), de Pier Paolo Pasolini; Le Streghe (A Magia da Mulher), episódio “La Terra vista dalla luna”, de Pier Paolo Pasolini; 1967: Operazione San Gennaro (Golpe de Mestre à Napolitana), de Dino Risi; Il padre di famiglia (O pai de família), de Nanni Loy (não credenciado); Don Giovannini (TV) de Bruno Corbucci; Il Latitante; Il Grande maestro; La Scommessa; Totò a Napoli; Totò Ye Ye; Il Tuttofare (TV), todos de  Daniele de Anza; 1968: Capriccio all'italiana, episódio “Il Mostro della Domenica”, de Steno, e episódio “Che cosa sono le nuvole ?”, de Pier Paolo Pasolini.