AS
FÉRIAS DO SR. HULOT (1953)
Depois de alguma curtas-metragens e da
estreia no filme de fundo, em 1949, com “Jour de Fête” (Há Festa na Aldeia),
Jacques
Tati lança a fabulosa personagem do Senhor Hulot, em “Les Vacances de Monsieur
Hulot” em 1953. Indiscutivelmente uma das grandes figuras de ficção, cómica ou
não, criadas no cinema, o Sr. Hulot voltaria a surgir em mais três títulos,
todos eles admiráveis, ainda que o êxito público tenha variado: “O Meu Tio”
(1958), “Play Time – Vida Moderna” (1967) e “Sim, Sr. Hulot” (Trafic, 1971).
O filme organiza-se de uma forma muito
simples (aparentemente simples, mas de uma complexidade de mestre de
relojoaria), estilo crónica do dia a dia de uma estância balnear francesa,
durante o seu período de Verão. O que unifica toda a acção é a pequena
comunidade que se reúne na praia de Saint-Marc-sur-Mer, localidade perto de Saint-Nazaire,
que nunca é nomeada enquanto tal, excepto no selo do postal final, mas que hoje
ostenta uma estátua da criação de Tati, e regida pelo escultor francês Emmanuel
Debarre, dominando o oceano e muito perto do “Hôtel de la Plage” que serviu de
cenário central ao filme.
Estamos nos anos 50 do século passado,
as férias de Verão são uma “obrigação” anualmente desejada por uma certa pequena
e média burguesia que se desloca para os seus locais preferidos, carregada de
malas e apetrechos afins, a fim de cumprir religiosamente um ritual. Instalam-se
sornamente na pensãozinha do sítio, ou alugam uma vivenda ou andar, e disfrutam
mansamente dos prazeres dos banhos de mar, dos pequenos passeios, das partidas
de ténis, dos gelados e das guloseimas da estação, regressando todos a toque de
sineta para as refeições do dia, jogando a sua bisca à noite, ouvindo rádio, ou
namoriscando mais ou menos às escondidas. Isto é o normal. Mas depois há o
elemento estranho que vem alterar toda a ordem instituída: o Senhor Hulot. Quem
pensa ter umas férias descansadas e pacatas esquece-se do carro do Senhor
Hulot, das técnicas de ténis do Senhor Hulot, da boa vontade sempre desajeitada
do Senhor Hulot, do desastroso passeio de caiaque do Senhor Hulot, das suas
incursões pela praia, do seu gosto por jazz em altos berros, da imprudência na
barraca de fogo de artifício, das pegadas de lama, da pele de tigre que se
enrosca nas esporas, dos piqueniques organizados em ordem militarizada, das
cadeiras trocadas nas partidas de cartas, dos bailes mascarados, e do seu
generoso amor pelas crianças, pela bela ocupante da mansarda, e pelos mais
desfavorecidos.
O efeito desestabilizador do humor volta
a encontrar aqui toda a sua justificação. O funeral que decorre no cemitério
local seria um funeral mais, até que chega o Senhor Hulot e o seu carro
avariado. A câmara do pneu que é colocada inocentemente no chão, vai provocar a
desregularização da cerimónia, quando é tomada por mais uma coroa de flores,
que depois vai esvaziar-se. O Senhor Hulot é integrado a contra gosto na
família do finado e tudo acaba em discretas gargalhadas. Mas a realidade
preexiste frágil. O casal de velhotes que passeia lentamente pelas amuradas da
praia, sempre em passo desencontrado, ela à frente, ele logo a seguir, de
braços cruzados atrás das costas, é, por si só, sem lhe acrescentar qualquer
gag, já um motivo de humor. Digamos que nalguns casos basta olhar a realidade,
para ela se desarticular e mostrar o ridículo que está subjacente. O que
demonstra por parte do autor um extraordinário espírito de observação, que lhe
permite reproduzir um conjunto de personagens absolutamente inesquecíveis,
desde o dono e o criado do “Hôtel de la Plage” (o criado poderá ter estado na
base do Manuel da série “Fawlty Towers”) até qualquer um dos veraneantes.
Logo nos planos iniciais, passados numa
estação de caminhos-de-ferro (precisamente a gare de Argentan), o cómico
instala-se pela simples observação e reprodução. Numa plataforma de embarque
está uma pequena multidão à espera do comboio quando se ouve através de um
roufenho altifalante um qualquer informação que leva toda a gente a descer e
subir escadas para chegar a outra plataforma, quando o comboio vai chegar numa
via diferente. O caos aqui é a realidade que o provoca. O humor limita-se a
registar o facto. Este é o tipo de humor de Jacques Tati, obviamente crítico em
relação a alguns aspectos da vida em sociedade, mas quase sempre terno e doce
nas suas observações. Haverá um ou outro olhar mais intenso, para o capitalista
que passa as ferias agarrado ao telefone, a controlar os valores da bolsa ou a
produção nas fábricas, mas o que move Tati é sobretudo valorizar o humano em
detrimento do desumano. A vida no interior da pensão seria muito mais agradável
se as refeições não fossem servidas a toque de sineta e se todos não se fossem
deitar mal acaba a emissão de rádio. É a massificação dos gestos que Tati aqui
critica, o que irá prosseguir na sua obra futura. De forma muito mais radical
em “O Meu Tio”, “Play Time” ou “Trafic”,
onde essa observação crítica se torna muito mais contundente, tendo em conta
sobretudo o aspecto de massificação da vida quotidiana nas grandes metrópoles.
Uma das características principais do
cinema de Jacques Tati prende-se com o facto de o seu humor ser quase sempre
físico, utilizando muito pouco as palavras, mas não descurando de forma alguma
o som. A banda sonora de “As Férias do Sr. Hulot” é particularmente cuidada e
meticulosa. Mas, por outro lado, o filme tem muito do cinema mudo, vive de uma
respiração gestual. Curiosidade a reter: para Tati um filme não está acabado
quando se estreia comercialmente. Parece que a versão que se estreou em 1953
era a terceira dada por terminada e depois retocada. Em 1978, Tati volta a
pegar no filme, filma uma nova sequência (em homenagem a “Tubarão”, de
Spielberg) e introdu-la na nova versão (a sequência de Hulot no caiaque que se
dobra e se assemelha a um tubarão). Introduz igualmente variações na banda
sonora, música e sons, e na duração do filme, transformando este numa “obra em
progressão”, o que seria um conceito “avant la lettre”.
Segundo depoimento de Nicolas Hulot, uma
conhecida vedeta do jornalismo televisivo francês, terá sido o seu avô, um
arquitecto que projectara o edifício onde habitava Tati, que terá servido de
inspiração para o nome da personagem. Tati teria mesmo pedido autorização para
utilizar este nome ao arquitecto que, além do nome (muito parecido sonoramente
com Charlot), teria uma silhueta física que terá aproximado Tati igualmente da
figura criada. Assim terá nascido esta incontornável personagem, alta,
desengonçada, vestindo uma gabardine (quando não está em férias de Verão),
chapéu e cachimbo. Quase não usando a palavra para estabelecer contacto com os
próximos, mostrando-se um autentico desadaptado em relação ao mundo que o
rodeia. O que se vai agravando a cada nova obra de Tati.
O filme teve um orçamento reduzido,
muitos apoios de amigos do realizador, e muitas contrariedades durantes as
filmagens, nomeadamente com mau tempo, acidentes e questões técnicas. Mas o
resultado perdura durante as décadas e ainda hoje é considerado uma das obras-primas
de um cineasta genial. “Les Vacances de Monsieur Hulot” foi prémio da crítica
no Festival de Cannes, em 1953, Prémio Louis-Delluc, Paris e Prix Femina, Bruxelas,
ainda no mesmo ano, Golden Laurel, em Edimburgo, 1955, e considerado o melhor filme
visto em Cuba em 1956. Está inscrito na lista das 50 obras que os jovens com
menos de 14 anos devem ver, organizada pelo BFI (British Film Institut, 2005).
AS
FÉRIAS DO SR. HULOT
Título
original: Les Vacances de Monsieur Hulot
Realização: Jacques Tati
(França, 1953); Argumento: Pierre Aubert, Jacques Lagrange, Henri Marquet,
Jacques Tati; Produção: Fred Orain, Jacques Tati; Música: Alain Romans;
Fotografia (p/b): Jacques Mercanton, Jean Mousselle; Montagem: Suzanne Baron,
Charles Bretoneiche, Jacques Grassi; Design de produção: Roger Briaucourt,
Henri Schmitt; Decoração: Henri Schmitt; Direcção de Produção: Fred Orain;
Assistentes de realização: Pierre Aubert; Departamento de arte: Pierre Clauzel,
André Pierdel; Som: Jacques Carrère, Roger Cosson, Guy Michel-Ange; Efeitos
visuais: Trey Freeman; Companhias de produção: Discina Film, Cady Films, Specta
Films; Intérpretes: Jacques Tati
(Monsieur Hulot), Louis (Fred), André Dubois (Comandante), Lucien Frégis (dono
de Hotel), Raymond Carl (criado), Nathalie Pascaud (Martine), Micheline Rolla
(Tia), Valentine Camax (senhora inglesa), Suzy Willy (mulher do comandante),
René Lacourt, Marguerite Gérard, Georges Adlin, Michèle Brabo, Édouard
Francomme, etc. Duração: 114
minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 6
anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Fevereiro de 1954 (Tivoli).
JACQUES
TATI
Filmografia:
Como
actor e realizador:
1932: Oscar, Champion de Tennis, de Jack Forrester (curta-metragem), com
Jacques Tati; 1934: On Demande une Brute (Procura-se Brutamontes), de Charles
Barrois (curta-metragem), com Jacques Tati; 1935: Gai Dimanche (Domingo
Animado), de Jacques Berr (curta-matragem), com Jacques Tati; 1936: Soigne Ton
Gauche (Cuida do Teu Gancho Esquerdo ou Cuida da Tua Esquerda), de René Clément
(curta-metragem), com Jacques Tati; 1938: Retour à la Terre (curta-metragem),
com Jacques Tati (Tati escreve o argumento, mas desconhece-se o realizador);
1945: Sylvie et le Fântome (Sílvia e o Fantasma), de Claude Antant-Lara
(Jacques Tati interpreta o papel de um soldado celebrando o armistício num
bar); 1947: L'École des Facteurs (A Escola de Carteiros), de Jacques Tati
(curta-metragem), com Jacques Tati; 1949: Jour de Fête (Há Festa na Aldeia), de
Jacques Tati; primeira longa-metragem escrita, realizada e interpretada por
Jacques Tati; 1953: Les Vacances de M. Hulot, (As Férias do Sr. Hulot);
realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1958: Mon Oncle (O Meu
Tio); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1967: Play Time
(Vida Moderna); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; Cours du soir (Aulas
Nocturnas), de Nicolas Ribowski, (curta-metragem), com Jacques Tati; 1971: Trafic (Sim. Sr. Hulot);
realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1972: Obraz uz
obraz, talk show na televisão jugoslava, onde Jacques Tati parece num episódio
emitido a 22 de Abril de 1972; 1974: Parade (Parade); realização, argumento e
interpretação de Jacques Tati.
Como
argumentista, surge ainda associado a outras obras: 1975: Mein Onkel
Theodor oder Wie man viel Geld im Schlaf verdient, de Gustav Ehmck; 2002: Forza
Bastia (Força, Bastia), de Jacques Tati, Sophie Tatischeff; e 2010:
L'illusionniste (O Mágico), de Sylvain Chomet (filme de animação).
(sobre obra e vida
de Jacques Tati ver nota na folha de “O Meu Tio”).
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