segunda-feira, 14 de março de 2016

SESSÃO 7 - 15 DE MARÇO DE 2016

AS FÉRIAS DO SR. HULOT (1953)

Depois de alguma curtas-metragens e da estreia no filme de fundo, em 1949, com “Jour de Fête” (Há Festa na Aldeia), Jacques Tati lança a fabulosa personagem do Senhor Hulot, em “Les Vacances de Monsieur Hulot” em 1953. Indiscutivelmente uma das grandes figuras de ficção, cómica ou não, criadas no cinema, o Sr. Hulot voltaria a surgir em mais três títulos, todos eles admiráveis, ainda que o êxito público tenha variado: “O Meu Tio” (1958), “Play Time – Vida Moderna” (1967) e “Sim, Sr. Hulot” (Trafic, 1971).
O filme organiza-se de uma forma muito simples (aparentemente simples, mas de uma complexidade de mestre de relojoaria), estilo crónica do dia a dia de uma estância balnear francesa, durante o seu período de Verão. O que unifica toda a acção é a pequena comunidade que se reúne na praia de Saint-Marc-sur-Mer, localidade perto de Saint-Nazaire, que nunca é nomeada enquanto tal, excepto no selo do postal final, mas que hoje ostenta uma estátua da criação de Tati, e regida pelo escultor francês Emmanuel Debarre, dominando o oceano e muito perto do “Hôtel de la Plage” que serviu de cenário central ao filme.
Estamos nos anos 50 do século passado, as férias de Verão são uma “obrigação” anualmente desejada por uma certa pequena e média burguesia que se desloca para os seus locais preferidos, carregada de malas e apetrechos afins, a fim de cumprir religiosamente um ritual. Instalam-se sornamente na pensãozinha do sítio, ou alugam uma vivenda ou andar, e disfrutam mansamente dos prazeres dos banhos de mar, dos pequenos passeios, das partidas de ténis, dos gelados e das guloseimas da estação, regressando todos a toque de sineta para as refeições do dia, jogando a sua bisca à noite, ouvindo rádio, ou namoriscando mais ou menos às escondidas. Isto é o normal. Mas depois há o elemento estranho que vem alterar toda a ordem instituída: o Senhor Hulot. Quem pensa ter umas férias descansadas e pacatas esquece-se do carro do Senhor Hulot, das técnicas de ténis do Senhor Hulot, da boa vontade sempre desajeitada do Senhor Hulot, do desastroso passeio de caiaque do Senhor Hulot, das suas incursões pela praia, do seu gosto por jazz em altos berros, da imprudência na barraca de fogo de artifício, das pegadas de lama, da pele de tigre que se enrosca nas esporas, dos piqueniques organizados em ordem militarizada, das cadeiras trocadas nas partidas de cartas, dos bailes mascarados, e do seu generoso amor pelas crianças, pela bela ocupante da mansarda, e pelos mais desfavorecidos.


O efeito desestabilizador do humor volta a encontrar aqui toda a sua justificação. O funeral que decorre no cemitério local seria um funeral mais, até que chega o Senhor Hulot e o seu carro avariado. A câmara do pneu que é colocada inocentemente no chão, vai provocar a desregularização da cerimónia, quando é tomada por mais uma coroa de flores, que depois vai esvaziar-se. O Senhor Hulot é integrado a contra gosto na família do finado e tudo acaba em discretas gargalhadas. Mas a realidade preexiste frágil. O casal de velhotes que passeia lentamente pelas amuradas da praia, sempre em passo desencontrado, ela à frente, ele logo a seguir, de braços cruzados atrás das costas, é, por si só, sem lhe acrescentar qualquer gag, já um motivo de humor. Digamos que nalguns casos basta olhar a realidade, para ela se desarticular e mostrar o ridículo que está subjacente. O que demonstra por parte do autor um extraordinário espírito de observação, que lhe permite reproduzir um conjunto de personagens absolutamente inesquecíveis, desde o dono e o criado do “Hôtel de la Plage” (o criado poderá ter estado na base do Manuel da série “Fawlty Towers”) até qualquer um dos veraneantes.
Logo nos planos iniciais, passados numa estação de caminhos-de-ferro (precisamente a gare de Argentan), o cómico instala-se pela simples observação e reprodução. Numa plataforma de embarque está uma pequena multidão à espera do comboio quando se ouve através de um roufenho altifalante um qualquer informação que leva toda a gente a descer e subir escadas para chegar a outra plataforma, quando o comboio vai chegar numa via diferente. O caos aqui é a realidade que o provoca. O humor limita-se a registar o facto. Este é o tipo de humor de Jacques Tati, obviamente crítico em relação a alguns aspectos da vida em sociedade, mas quase sempre terno e doce nas suas observações. Haverá um ou outro olhar mais intenso, para o capitalista que passa as ferias agarrado ao telefone, a controlar os valores da bolsa ou a produção nas fábricas, mas o que move Tati é sobretudo valorizar o humano em detrimento do desumano. A vida no interior da pensão seria muito mais agradável se as refeições não fossem servidas a toque de sineta e se todos não se fossem deitar mal acaba a emissão de rádio. É a massificação dos gestos que Tati aqui critica, o que irá prosseguir na sua obra futura. De forma muito mais radical em  “O Meu Tio”, “Play Time” ou “Trafic”, onde essa observação crítica se torna muito mais contundente, tendo em conta sobretudo o aspecto de massificação da vida quotidiana nas grandes metrópoles.
Uma das características principais do cinema de Jacques Tati prende-se com o facto de o seu humor ser quase sempre físico, utilizando muito pouco as palavras, mas não descurando de forma alguma o som. A banda sonora de “As Férias do Sr. Hulot” é particularmente cuidada e meticulosa. Mas, por outro lado, o filme tem muito do cinema mudo, vive de uma respiração gestual. Curiosidade a reter: para Tati um filme não está acabado quando se estreia comercialmente. Parece que a versão que se estreou em 1953 era a terceira dada por terminada e depois retocada. Em 1978, Tati volta a pegar no filme, filma uma nova sequência (em homenagem a “Tubarão”, de Spielberg) e introdu-la na nova versão (a sequência de Hulot no caiaque que se dobra e se assemelha a um tubarão). Introduz igualmente variações na banda sonora, música e sons, e na duração do filme, transformando este numa “obra em progressão”, o que seria um conceito “avant la lettre”.


Segundo depoimento de Nicolas Hulot, uma conhecida vedeta do jornalismo televisivo francês, terá sido o seu avô, um arquitecto que projectara o edifício onde habitava Tati, que terá servido de inspiração para o nome da personagem. Tati teria mesmo pedido autorização para utilizar este nome ao arquitecto que, além do nome (muito parecido sonoramente com Charlot), teria uma silhueta física que terá aproximado Tati igualmente da figura criada. Assim terá nascido esta incontornável personagem, alta, desengonçada, vestindo uma gabardine (quando não está em férias de Verão), chapéu e cachimbo. Quase não usando a palavra para estabelecer contacto com os próximos, mostrando-se um autentico desadaptado em relação ao mundo que o rodeia. O que se vai agravando a cada nova obra de Tati.  
O filme teve um orçamento reduzido, muitos apoios de amigos do realizador, e muitas contrariedades durantes as filmagens, nomeadamente com mau tempo, acidentes e questões técnicas. Mas o resultado perdura durante as décadas e ainda hoje é considerado uma das obras-primas de um cineasta genial. “Les Vacances de Monsieur Hulot” foi prémio da crítica no Festival de Cannes, em 1953, Prémio Louis-Delluc, Paris e Prix Femina, Bruxelas, ainda no mesmo ano, Golden Laurel, em Edimburgo, 1955, e considerado o melhor filme visto em Cuba em 1956. Está inscrito na lista das 50 obras que os jovens com menos de 14 anos devem ver, organizada pelo BFI (British Film Institut, 2005).



AS FÉRIAS DO SR. HULOT
Título original: Les Vacances de Monsieur Hulot
Realização: Jacques Tati (França, 1953); Argumento: Pierre Aubert, Jacques Lagrange, Henri Marquet, Jacques Tati; Produção: Fred Orain, Jacques Tati; Música: Alain Romans; Fotografia (p/b): Jacques Mercanton, Jean Mousselle; Montagem: Suzanne Baron, Charles Bretoneiche, Jacques Grassi; Design de produção: Roger Briaucourt, Henri Schmitt; Decoração: Henri Schmitt; Direcção de Produção: Fred Orain; Assistentes de realização: Pierre Aubert; Departamento de arte: Pierre Clauzel, André Pierdel; Som: Jacques Carrère, Roger Cosson, Guy Michel-Ange; Efeitos visuais: Trey Freeman; Companhias de produção: Discina Film, Cady Films, Specta Films; Intérpretes: Jacques Tati (Monsieur Hulot), Louis (Fred), André Dubois (Comandante), Lucien Frégis (dono de Hotel), Raymond Carl (criado), Nathalie Pascaud (Martine), Micheline Rolla (Tia), Valentine Camax (senhora inglesa), Suzy Willy (mulher do comandante), René Lacourt, Marguerite Gérard, Georges Adlin, Michèle Brabo, Édouard Francomme, etc. Duração: 114 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Fevereiro de 1954 (Tivoli).


JACQUES TATI
Filmografia:
Como actor e realizador: 1932: Oscar, Champion de Tennis, de Jack Forrester (curta-metragem), com Jacques Tati; 1934: On Demande une Brute (Procura-se Brutamontes), de Charles Barrois (curta-metragem), com Jacques Tati; 1935: Gai Dimanche (Domingo Animado), de Jacques Berr (curta-matragem), com Jacques Tati; 1936: Soigne Ton Gauche (Cuida do Teu Gancho Esquerdo ou Cuida da Tua Esquerda), de René Clément (curta-metragem), com Jacques Tati; 1938: Retour à la Terre (curta-metragem), com Jacques Tati (Tati escreve o argumento, mas desconhece-se o realizador); 1945: Sylvie et le Fântome (Sílvia e o Fantasma), de Claude Antant-Lara (Jacques Tati interpreta o papel de um soldado celebrando o armistício num bar); 1947: L'École des Facteurs (A Escola de Carteiros), de Jacques Tati (curta-metragem), com Jacques Tati; 1949: Jour de Fête (Há Festa na Aldeia), de Jacques Tati; primeira longa-metragem escrita, realizada e interpretada por Jacques Tati; 1953: Les Vacances de M. Hulot, (As Férias do Sr. Hulot); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1958: Mon Oncle (O Meu Tio); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1967: Play Time (Vida Moderna); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; Cours du soir (Aulas Nocturnas), de Nicolas Ribowski, (curta-metragem), com Jacques Tati; 1971: Trafic (Sim. Sr. Hulot); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati; 1972: Obraz uz obraz, talk show na televisão jugoslava, onde Jacques Tati parece num episódio emitido a 22 de Abril de 1972; 1974: Parade (Parade); realização, argumento e interpretação de Jacques Tati.
Como argumentista, surge ainda associado a outras obras: 1975: Mein Onkel Theodor oder Wie man viel Geld im Schlaf verdient, de Gustav Ehmck; 2002: Forza Bastia (Força, Bastia), de Jacques Tati, Sophie Tatischeff; e 2010: L'illusionniste (O Mágico), de Sylvain Chomet (filme de animação).


(sobre obra e vida de Jacques Tati ver nota na folha de “O Meu Tio”).

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