O
MEU TIO (1958)
A genialidade de Jacques Tati fica bem
documentada em qualquer uma das suas longas-metragens, mas creio que “O Meu
Tio” é talvez o seu trabalho mais reconhecido e mais elogiado. Terceira
longa-metragem, segunda protagonizada pelo Senhor Hulot, “Mon Oncle” é uma
admirável comédia sobre a (falsa) modernidade, a ostentação do novo-riquismo,
algo muito flagrante em todas as idades, mas muito sentido na década de 50 do
século passado, dado que foi um período de ouro da implantação generalizada do
uso do carro e da generalização do uso dos eletrodomésticos. Mais ainda, uma
época onde um design agressivo de mobiliário de interiores e exteriores, que
hoje em dia é visto com certa nostalgia vintage, mas que não altura era por
muitos apenas visto como de um mau gosto e de um desconforto invulgares. Neste,
e em muito outros aspectos, “Mon Oncle” relembra o brilhante “Tempos Modernos”,
de Charlie Chaplin, havendo em ambos um desadaptado que não se consegue
integrar num mundo onde as últimas invenções, em lugar de facilitarem a vida do
homem comum, a dificultam. Charlot e Hulot têm, por isso, muitos pontos de
contacto.
O filme oscila entre dois universos
inconciliáveis: por um lado um director de uma fábrica de mangueiras de
plástico, homem com uma família “muito moderna”, os Arpel, certamente por
influência da sua mulher que não perde uma ocasião para mostrar a excelência do
seu jardim, da sua cozinha, do interior da casa, com “as divisões todas abertas
umas para as outras”, e que faz gala de nunca deixar entrar uma visita no seu
jardim sem ligar o repuxo do peixe que lança água para o espaço, dando as boas
vindas ao intruso. Obviamente que o repuxo é vedeta de alguns gags magníficos,
porque às vezes é ligado para um desinteressante operário que vem entregar uma
encomenda ou para alguém da casa que já não o merece. Ou então é desligado,
porque não queremos tapetes persas e, afinal, trata-se da vizinha com estranha
indumentária não reconhecível de imediato. O repuxo é o símbolo da saloiice
daquela estranha família, onde só o filho adolescente parece ser alguém normal,
sobretudo quando sai com o tio, o tal Senhor Hulot, que vive num bairro
modesto, popular, habita uma casa onde para chegar às suas águas furtadas tem
de percorrer um labirinto de corredores e escadas que acompanhamos do exterior,
tal como o fotógrafo de “Janela Indiscreta”, de Hitchcock, acompanha as
traseiras do seu andar (uma obra de 1954 que pode bem ter sugerido este Tati,
de 1958).
Hulot é o indivíduo bem avontadado,
imune a cerimónias e salamaleques, que gosta de viver e não se preocupa com a
indumentária e ainda menos com o que os outros possam pensar dele. Faz a sua
vida, é simpático para todos, não se dá nada bem com as modernices inúteis, nem
com a jactância dos novos-ricos, e causa grandes problemas, sem o pretender,
sempre que o procuram encaixar numa estrutura social estável, como por exemplo
numa fábrica de mangueiras de plástico que a partir dai se assemelha mais a uma
fábrica de salsichas. O sobrinho Gerard adora sair com ele porque sabe que vai
estar em liberdade, longe do rigor maníaco dos pais, perto de saborear um bom
jogo de futebol na lama, boas guloseimas populares, e de pregar partidas como a
fabulosa invenção do assobio junto a um candeeiro de iluminação pública que vai
provocar normalmente alguma consternação nos passantes. Mais um gag delicioso,
num filme que os inventa consecutivamente, mantendo todavia uma toada de
comédia delicada e doce, por onde perpassa a voluptuosa nostalgia dos velhos
tempos onde a harmonia do homem com a natureza era mais saudável.
A senhora Arpel mostra a sua casa aos
convidados para um lanche no jardim, dizendo “E essa
é minha sala de estar”, e uma das visitantes nota: “Um pouco vazia, não?”. Ao que a senhora Arpel responde:
“Mas é moderna!”. Minimalista diríamos hoje. A moda acima de tudo, o último
grito do design a impor-se. Não é eficaz, não serve para nada, mas é moderno!
A construção do humor em
Tati é de um rigor invulgar. Os gags são na sua maioria visuais, é certo, mas
na verdade, se atentarmos bem, o papel do som, quer da música, quer dos efeitos
sonoros, dos ruídos, é absolutamente invulgar de bem trabalhado e explorado. Os
ruídos das máquinas, dos gadgets, dos movimentos humanos, das corridas dos
cães, tudo é obsessivamente construído na minucia. Exemplar e brilhante.
O contraponto entre o
moderno inútil e hostil e o mais tradicional, modesto, quente e afectuoso
(recorde-se o bairro onde vive Hulot, com a sua taberna e os frequentadores
habituais, os cães, o varredor de rua que não sai do mesmo sítio, agarrado a
conversas infindáveis…) diz bem de que lado que encontram as simpatias de
Hulot. Tati explicou-o: “Não acredito que as linhas geométricas tornem as
pessoas amáveis”.
A crítica a esta sociedade
falsa e hipócrita é inquestionável, mas Tati nunca grita, nunca se irrita
demasiado, acredita que o simples olhar de frente a realidade é suficiente para
o espectador formar o seu juízo. E sorrir. “O Meu Tio” é uma comédia, mas onde
o riso vigoroso nunca aflora, deixando permanecer nos lábios da assistência um
sorriso cúmplice, saboroso, divertido, terno, humano. “O Meu Tio” é, por isso
tudo, uma das melhores comédias de sempre. E Tati um “must” em qualquer lista
das 10 melhores de todos os tempos.
O
MEU TIO
Título
original: Mon oncle
Realização: Jacques Tati
(França, Itália, 1958); Argumento: Jacques Lagrange, Jean L'Hôte, Jacques Tati;
Produção: Louis Dolivet, Jacques Tati, Alain Térouanne, Fred Orain; Música:
Franck Barcellini, Alain Romans, Norbert Glanzberg; Fotografia (cor): Jean
Bourgoin; Montagem: Suzanne Baron; Design de produção: Henri Schmitt;
Decoração: Henri Schmitt; Guarda-roupa: Jacques Cottin; Maquilhagem: Boris
Karabanoff; Direcção de Produção: Bernard Maurice; Assistentes de realização:
Henri Marquet, Pierre Étaix; Departamento de arte: Eugène Roman; Som: Jacques
Carrère; Efeitos visuais: Bertrand Levallois, Ugo Bimar; Companhias de
produção: Gaumont Distribution, Specta Films, Gray-Film, Alter Films; Intérpretes: Jacques
Tati (Monsieur Hulot) (não creditado), Jean-Pierre Zola (Charles Arpel,
Adrienne (Betty), Jean-François (Walter), Dominique Marie (vizinha), Yvonne
(Gerard Arpel), Régis Fontenay,Claude Badolle, Max Martel, Nicolas Bataille,
Daki, Dominique Derly, André Dino, Suzanne Franck, Édouard Francomme, Michel
Goyot, René Lord, Elsa Mancini, Jean Meyet, Denise Péronne, Nicole Regnault,
Claire Rocca, Jean-Claude Rémoleux,etc. Duração:
117 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária:
M/ 6anos; Data de estreia em Portugal: 21 de Fevereiro de 1975.
JACQUES
TATI (1907-1982)
Com três filmes apenas, ele foi desde
logo considerado um dos maiores criadores cómicos do cinema de todos os tempos
e de todos os lugares. Apenas com “Há Festa na Aldeia”, “As Férias do Sr. Hulot”
e “O Meu Tio”, ele conseguiu impor-se com uma obra de uma consistência e
coerência total, de uma exigência e modernidade absoluta e, todavia, de adesão
imediata por parte de todos os públicos. Conseguiu tornar-se recordado para
sempre. Quando, numa roda de amigos, se fala num desses títulos, ou vem à baila
o nome de Jacques Tati, seu autor, ou de M. Hulot, sua fabulosa criação, é
certo e sabido que a enumeração de uns quantos “gags” e de algumas situações
inesquecíveis, irão processar-se por entre lágrimas de puro deleite e de um
prazer irreprimíveis.
Curiosamente (infelizmente também), a
carreira de Tati teve uma fase ascendente, de reconhecimento internacional, que
culminaria em 1958 com a atribuição do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro a
"Mon Oncle”, iniciando-se depois disso uma fase de progressivo apagamento,
que o deixaria sem trabalhar durante longos anos. Na verdade, depois de “O Meu
Tio”, apenas em 1967 voltaria aos ecrãs com uma nova obra, rodada em 70
milímetros, “Play Time”, que traria o autor a Lisboa, para apresentar o filme
na saudosa sala do Monumental. O resultado comercial não foi brilhante, as
dúvidas dos produtores recaíram sobre ele e, em 1971, “Trafic” não conheceria
melhor sorte. Apenas em 1974, em condições bastante precárias, voltaria a rodar
“Parade”, que ficaria como o seu testamento cinematográfico.
Foi esse homem, que deu um novo rumo ao
humor francês, que morreu em Paris, com 75 anos, vítima de uma embolia
pulmonar, no dia 4 de Novembro de 1982. De ascendência russa, nascera a 9 de
Outubro de 1907, na região de Pecq, departamento de Seine-en-Oise, em França,
filho de um encadernador de profissão, de nome Tatischeff. Tati nasceu, aliás,
com o nome de Jacques Tatischeff, abreviando-o depois para Jacques Tati, quando
adoptou um nome artístico para as suas primeiras actuações em “music-hall”.
Desde muito novo que se entregara
intensamente a práticas desportivas, tendo sido jogador de râguebi no Racing
Clube de Paris, além de tentar ainda o boxe e o ténis. Quando, aos 23 anos, se
estreia no “music-hall” é um excelente mimo, capaz mesmo de transformar a velha
arte de pantomina em algo de inesperadamente novo e espectacular, como se pode
deduzir das palavras de Colette, depois de assistir ao seu “show” no ABC:
"Em Jacques Tati, cavalo e cavaleiro, toda o Paris verá, estuante de vida,
a criatura fabulosa, o Centauro”. Este mesmo "número” seria mais tarde
recriado em “Parade”.
O cinema começou por registar, em
numerosas curtas-metragens, as pantominas de Jacques Tati, como nessa excelente
“Cuida da Tua Esquerda” ou Cuida do Teu Gancho Esquerdo, paródia ao boxe,
realizada em 1936 por outro jovem, René Clement, e que correria em telas
portuguesas só muito mais tarde. Em 1946, porém, dá-se o grande encontro da
arte do actor Jacques Tati com as suas possibilidades de realizador que passou
a ser. “A Escola de Carteiros” (L'École des Factuers), filme de duas bobines,
ganha o prémio Max Linder, e chama a atenção de todos para a novidade de estilo
e de intenções do cineasta. E assim o produtor Fred Orain resolve confiar-lhe a
rodagem de um filme de fundo, que tem como base a linha cómica de “A Escola de
Carteiros”, e se chamará “Há Festa na Aldeia” (Jour de Fete). Foram tais os
métodos utilizados, tão novo o estilo de humor, tão diferentes os processos de
realização e interpretação que os distribuidores se negaram a projectar o filme
e, para pagar certos trabalhos em atraso, o produtor teve de vender a sua casa
de campo. Finalmente estreado, “Há Festa na Aldeia” venceu em toda a linha e
terá rendido ao produtor uma recompensa estimulante para o sacrifício feito.
Quer como produtor de arte das imagens, quer como espectáculo de bilheteira.
“Jour de Fete” foi um sucesso estrondoso que ainda hoje faz as delícias de
quantos o vêem e o saboreiam. É uma obra livre, singela, tocada por um humor
visual extraordinário, em cujas imagens passa a imperturbável e insólita figura
de um carteiro alto e desengonçado, de farto bigode, anunciando já, na sua
mímica quase silenciosa, herdeira de Max Linder e Buster Keaton, a personagem
admirável do Senhor Hulot.
Apresentado no festival de Cannes de
1953, “As Férias do Senhor Hulot” não só confirmaram as promessas do filme
anterior, como inventaram uma nova figura do cómico mundial, capaz de, numa só
peripécia, descobrir uma nova linguagem e estruturar toda uma teoria do humor.
A terna alegria do senhor Hulot e a
sátira gentil, mas acutilante, de Jacques Tati aos convencionalismos,
hipocrisia e mentiras do nosso mundo moderno, estão por inteiro contidas em “O
Meu Tio” (Mon Oncle), rodado já a cores, em 1958, que foi então um fabuloso
êxito internacional. Aí se satiriza fundamentalmente a escravidão técnica e os
costumes do nosso tempo, enquanto se define, com maior precisão, a personagem
do senhor Hulot. É Tati quem profere estas palavras que podem resumir com
clareza os seus primeiros trabalhos e toda a sua filosofia: “É para descobrir
os segredos da vida quotidiana que o cinema existe, não para repetir cenas e
gestos estereotipados”.
Depois é o grande silêncio durante dez
anos, o que não deixa de ser estranho, dado que nesse momento Tati é um
triunfador que os produtores disputam. Mas ele nega-se à produção em série e
espera até 1967 para estrear “Play Time” (Vida Moderna). O filme, que teve um
orçamento grande e uma receita não totalmente recompensadora, coloca o autor
numa situação diferente. Agora terá que esperar por nova oportunidade; que só
irá surgir em 1971. Com “Trafic” (Sim, Sr. Hulot), uma obra que denuncia já um
certo cansaço criativo e alguma morosidade na invenção do “gag” e no seu
desenvolvimento. Em 1974, irá voltar a Cannes com “Parade”, rodado para a
televisão, e que acabaria por ser estreado em salas de cinema, apesar de
gravado em “vídeo”. Esta viagem nostálgica pelo mundo do circo, assume-se como
nova e arrojada aventura de um criador com sede de inovação. Muitos anos antes
de “O Mistério de 0berward”, de Antonioni, “Parade” é já um filme inicialmente
trabalhado em vídeo e depois passado a cinema, abrindo assim novas perspectivas
a uma colaboração que, hoje-em dia, se sabe extremamente frutuosa. Para além
disso, “Parade” é Tati do melhor, reconduzindo à pureza e à sinceridade
originais onde a candura do olhar se mistura com única crítica agreste à
moderna civilização e aos seus traumas.
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