segunda-feira, 14 de março de 2016

SESSÃO 8 - 22 DE MARÇO DE 2016


O MEU TIO (1958)

A genialidade de Jacques Tati fica bem documentada em qualquer uma das suas longas-metragens, mas creio que “O Meu Tio” é talvez o seu trabalho mais reconhecido e mais elogiado. Terceira longa-metragem, segunda protagonizada pelo Senhor Hulot, “Mon Oncle” é uma admirável comédia sobre a (falsa) modernidade, a ostentação do novo-riquismo, algo muito flagrante em todas as idades, mas muito sentido na década de 50 do século passado, dado que foi um período de ouro da implantação generalizada do uso do carro e da generalização do uso dos eletrodomésticos. Mais ainda, uma época onde um design agressivo de mobiliário de interiores e exteriores, que hoje em dia é visto com certa nostalgia vintage, mas que não altura era por muitos apenas visto como de um mau gosto e de um desconforto invulgares. Neste, e em muito outros aspectos, “Mon Oncle” relembra o brilhante “Tempos Modernos”, de Charlie Chaplin, havendo em ambos um desadaptado que não se consegue integrar num mundo onde as últimas invenções, em lugar de facilitarem a vida do homem comum, a dificultam. Charlot e Hulot têm, por isso, muitos pontos de contacto.
O filme oscila entre dois universos inconciliáveis: por um lado um director de uma fábrica de mangueiras de plástico, homem com uma família “muito moderna”, os Arpel, certamente por influência da sua mulher que não perde uma ocasião para mostrar a excelência do seu jardim, da sua cozinha, do interior da casa, com “as divisões todas abertas umas para as outras”, e que faz gala de nunca deixar entrar uma visita no seu jardim sem ligar o repuxo do peixe que lança água para o espaço, dando as boas vindas ao intruso. Obviamente que o repuxo é vedeta de alguns gags magníficos, porque às vezes é ligado para um desinteressante operário que vem entregar uma encomenda ou para alguém da casa que já não o merece. Ou então é desligado, porque não queremos tapetes persas e, afinal, trata-se da vizinha com estranha indumentária não reconhecível de imediato. O repuxo é o símbolo da saloiice daquela estranha família, onde só o filho adolescente parece ser alguém normal, sobretudo quando sai com o tio, o tal Senhor Hulot, que vive num bairro modesto, popular, habita uma casa onde para chegar às suas águas furtadas tem de percorrer um labirinto de corredores e escadas que acompanhamos do exterior, tal como o fotógrafo de “Janela Indiscreta”, de Hitchcock, acompanha as traseiras do seu andar (uma obra de 1954 que pode bem ter sugerido este Tati, de 1958). 


Hulot é o indivíduo bem avontadado, imune a cerimónias e salamaleques, que gosta de viver e não se preocupa com a indumentária e ainda menos com o que os outros possam pensar dele. Faz a sua vida, é simpático para todos, não se dá nada bem com as modernices inúteis, nem com a jactância dos novos-ricos, e causa grandes problemas, sem o pretender, sempre que o procuram encaixar numa estrutura social estável, como por exemplo numa fábrica de mangueiras de plástico que a partir dai se assemelha mais a uma fábrica de salsichas. O sobrinho Gerard adora sair com ele porque sabe que vai estar em liberdade, longe do rigor maníaco dos pais, perto de saborear um bom jogo de futebol na lama, boas guloseimas populares, e de pregar partidas como a fabulosa invenção do assobio junto a um candeeiro de iluminação pública que vai provocar normalmente alguma consternação nos passantes. Mais um gag delicioso, num filme que os inventa consecutivamente, mantendo todavia uma toada de comédia delicada e doce, por onde perpassa a voluptuosa nostalgia dos velhos tempos onde a harmonia do homem com a natureza era mais saudável.
A senhora Arpel mostra a sua casa aos convidados para um lanche no jardim, dizendo “E essa é minha sala de estar”, e uma das visitantes nota: “Um pouco vazia, não?”. Ao que a senhora Arpel responde: “Mas é moderna!”. Minimalista diríamos hoje. A moda acima de tudo, o último grito do design a impor-se. Não é eficaz, não serve para nada, mas é moderno!


A construção do humor em Tati é de um rigor invulgar. Os gags são na sua maioria visuais, é certo, mas na verdade, se atentarmos bem, o papel do som, quer da música, quer dos efeitos sonoros, dos ruídos, é absolutamente invulgar de bem trabalhado e explorado. Os ruídos das máquinas, dos gadgets, dos movimentos humanos, das corridas dos cães, tudo é obsessivamente construído na minucia. Exemplar e brilhante. 
O contraponto entre o moderno inútil e hostil e o mais tradicional, modesto, quente e afectuoso (recorde-se o bairro onde vive Hulot, com a sua taberna e os frequentadores habituais, os cães, o varredor de rua que não sai do mesmo sítio, agarrado a conversas infindáveis…) diz bem de que lado que encontram as simpatias de Hulot. Tati explicou-o: “Não acredito que as linhas geométricas tornem as pessoas amáveis”.
A crítica a esta sociedade falsa e hipócrita é inquestionável, mas Tati nunca grita, nunca se irrita demasiado, acredita que o simples olhar de frente a realidade é suficiente para o espectador formar o seu juízo. E sorrir. “O Meu Tio” é uma comédia, mas onde o riso vigoroso nunca aflora, deixando permanecer nos lábios da assistência um sorriso cúmplice, saboroso, divertido, terno, humano. “O Meu Tio” é, por isso tudo, uma das melhores comédias de sempre. E Tati um “must” em qualquer lista das 10 melhores de todos os tempos.

O MEU TIO
Título original: Mon oncle
Realização: Jacques Tati (França, Itália, 1958); Argumento: Jacques Lagrange, Jean L'Hôte, Jacques Tati; Produção: Louis Dolivet, Jacques Tati, Alain Térouanne, Fred Orain; Música: Franck Barcellini, Alain Romans, Norbert Glanzberg; Fotografia (cor): Jean Bourgoin; Montagem: Suzanne Baron; Design de produção: Henri Schmitt; Decoração: Henri Schmitt; Guarda-roupa: Jacques Cottin; Maquilhagem: Boris Karabanoff; Direcção de Produção: Bernard Maurice; Assistentes de realização: Henri Marquet, Pierre Étaix; Departamento de arte: Eugène Roman; Som: Jacques Carrère; Efeitos visuais: Bertrand Levallois, Ugo Bimar; Companhias de produção: Gaumont Distribution, Specta Films, Gray-Film, Alter Films; Intérpretes: Jacques Tati (Monsieur Hulot) (não creditado), Jean-Pierre Zola (Charles Arpel, Adrienne (Betty), Jean-François (Walter), Dominique Marie (vizinha), Yvonne (Gerard Arpel), Régis Fontenay,Claude Badolle, Max Martel, Nicolas Bataille, Daki, Dominique Derly, André Dino, Suzanne Franck, Édouard Francomme, Michel Goyot, René Lord, Elsa Mancini, Jean Meyet, Denise Péronne, Nicole Regnault, Claire Rocca, Jean-Claude Rémoleux,etc. Duração: 117 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 6anos; Data de estreia em Portugal: 21 de Fevereiro de 1975.


JACQUES TATI (1907-1982)
Com três filmes apenas, ele foi desde logo considerado um dos maiores criadores cómicos do cinema de todos os tempos e de todos os lugares. Apenas com “Há Festa na Aldeia”, “As Férias do Sr. Hulot” e “O Meu Tio”, ele conseguiu impor-se com uma obra de uma consistência e coerência total, de uma exigência e modernidade absoluta e, todavia, de adesão imediata por parte de todos os públicos. Conseguiu tornar-se recordado para sempre. Quando, numa roda de amigos, se fala num desses títulos, ou vem à baila o nome de Jacques Tati, seu autor, ou de M. Hulot, sua fabulosa criação, é certo e sabido que a enumeração de uns quantos “gags” e de algumas situações inesquecíveis, irão processar-se por entre lágrimas de puro deleite e de um prazer irreprimíveis.
Curiosamente (infelizmente também), a carreira de Tati teve uma fase ascendente, de reconhecimento internacional, que culminaria em 1958 com a atribuição do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro a "Mon Oncle”, iniciando-se depois disso uma fase de progressivo apagamento, que o deixaria sem trabalhar durante longos anos. Na verdade, depois de “O Meu Tio”, apenas em 1967 voltaria aos ecrãs com uma nova obra, rodada em 70 milímetros, “Play Time”, que traria o autor a Lisboa, para apresentar o filme na saudosa sala do Monumental. O resultado comercial não foi brilhante, as dúvidas dos produtores recaíram sobre ele e, em 1971, “Trafic” não conheceria melhor sorte. Apenas em 1974, em condições bastante precárias, voltaria a rodar “Parade”, que ficaria como o seu testamento cinematográfico.
Foi esse homem, que deu um novo rumo ao humor francês, que morreu em Paris, com 75 anos, vítima de uma embolia pulmonar, no dia 4 de Novembro de 1982. De ascendência russa, nascera a 9 de Outubro de 1907, na região de Pecq, departamento de Seine-en-Oise, em França, filho de um encadernador de profissão, de nome Tatischeff. Tati nasceu, aliás, com o nome de Jacques Tatischeff, abreviando-o depois para Jacques Tati, quando adoptou um nome artístico para as suas primeiras actuações em “music-hall”.
Desde muito novo que se entregara intensamente a práticas desportivas, tendo sido jogador de râguebi no Racing Clube de Paris, além de tentar ainda o boxe e o ténis. Quando, aos 23 anos, se estreia no “music-hall” é um excelente mimo, capaz mesmo de transformar a velha arte de pantomina em algo de inesperadamente novo e espectacular, como se pode deduzir das palavras de Colette, depois de assistir ao seu “show” no ABC: "Em Jacques Tati, cavalo e cavaleiro, toda o Paris verá, estuante de vida, a criatura fabulosa, o Centauro”. Este mesmo "número” seria mais tarde recriado em “Parade”.
O cinema começou por registar, em numerosas curtas-metragens, as pantominas de Jacques Tati, como nessa excelente “Cuida da Tua Esquerda” ou Cuida do Teu Gancho Esquerdo, paródia ao boxe, realizada em 1936 por outro jovem, René Clement, e que correria em telas portuguesas só muito mais tarde. Em 1946, porém, dá-se o grande encontro da arte do actor Jacques Tati com as suas possibilidades de realizador que passou a ser. “A Escola de Carteiros” (L'École des Factuers), filme de duas bobines, ganha o prémio Max Linder, e chama a atenção de todos para a novidade de estilo e de intenções do cineasta. E assim o produtor Fred Orain resolve confiar-lhe a rodagem de um filme de fundo, que tem como base a linha cómica de “A Escola de Carteiros”, e se chamará “Há Festa na Aldeia” (Jour de Fete). Foram tais os métodos utilizados, tão novo o estilo de humor, tão diferentes os processos de realização e interpretação que os distribuidores se negaram a projectar o filme e, para pagar certos trabalhos em atraso, o produtor teve de vender a sua casa de campo. Finalmente estreado, “Há Festa na Aldeia” venceu em toda a linha e terá rendido ao produtor uma recompensa estimulante para o sacrifício feito. Quer como produtor de arte das imagens, quer como espectáculo de bilheteira. “Jour de Fete” foi um sucesso estrondoso que ainda hoje faz as delícias de quantos o vêem e o saboreiam. É uma obra livre, singela, tocada por um humor visual extraordinário, em cujas imagens passa a imperturbável e insólita figura de um carteiro alto e desengonçado, de farto bigode, anunciando já, na sua mímica quase silenciosa, herdeira de Max Linder e Buster Keaton, a personagem admirável do Senhor Hulot.  
Apresentado no festival de Cannes de 1953, “As Férias do Senhor Hulot” não só confirmaram as promessas do filme anterior, como inventaram uma nova figura do cómico mundial, capaz de, numa só peripécia, descobrir uma nova linguagem e estruturar toda uma teoria do humor.
A terna alegria do senhor Hulot e a sátira gentil, mas acutilante, de Jacques Tati aos convencionalismos, hipocrisia e mentiras do nosso mundo moderno, estão por inteiro contidas em “O Meu Tio” (Mon Oncle), rodado já a cores, em 1958, que foi então um fabuloso êxito internacional. Aí se satiriza fundamentalmente a escravidão técnica e os costumes do nosso tempo, enquanto se define, com maior precisão, a personagem do senhor Hulot. É Tati quem profere estas palavras que podem resumir com clareza os seus primeiros trabalhos e toda a sua filosofia: “É para descobrir os segredos da vida quotidiana que o cinema existe, não para repetir cenas e gestos estereotipados”. 

Depois é o grande silêncio durante dez anos, o que não deixa de ser estranho, dado que nesse momento Tati é um triunfador que os produtores disputam. Mas ele nega-se à produção em série e espera até 1967 para estrear “Play Time” (Vida Moderna). O filme, que teve um orçamento grande e uma receita não totalmente recompensadora, coloca o autor numa situação diferente. Agora terá que esperar por nova oportunidade; que só irá surgir em 1971. Com “Trafic” (Sim, Sr. Hulot), uma obra que denuncia já um certo cansaço criativo e alguma morosidade na invenção do “gag” e no seu desenvolvimento. Em 1974, irá voltar a Cannes com “Parade”, rodado para a televisão, e que acabaria por ser estreado em salas de cinema, apesar de gravado em “vídeo”. Esta viagem nostálgica pelo mundo do circo, assume-se como nova e arrojada aventura de um criador com sede de inovação. Muitos anos antes de “O Mistério de 0berward”, de Antonioni, “Parade” é já um filme inicialmente trabalhado em vídeo e depois passado a cinema, abrindo assim novas perspectivas a uma colaboração que, hoje-em dia, se sabe extremamente frutuosa. Para além disso, “Parade” é Tati do melhor, reconduzindo à pureza e à sinceridade originais onde a candura do olhar se mistura com única crítica agreste à moderna civilização e aos seus traumas.

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