O APAIXONADO (1962)
Não se poderá
dizer que Pierre Étaix tenha sido um actor-realizador que tenha arregimentado
uma legião de adeptos, mesmo no tempo em que foi mais celebrado, durante a
década de 60 do século XX. Mas foi um nome considerado, respeitado e terá
congregado um grupo de fiéis que viram nele um continuador inspirado e personalizado
da obra de muitos outros cineastas que fizeram do humor o seu campo de batalha.
Deve dizer-se desde logo que Pierre Étaix deve muito e prolonga o humor de
Jacques Tati, com quem trabalhou em “O Meu Tio”. A mesma discrição, a mesma
delicadeza, o mesmo olhar enternecedor sobre as pessoas. Mas haverá ainda algo
de Chaplin, é óbvio (qual o cómico que o recusa?), muito de Buster Keaton,
desde a quase ausência de expressão facial até uma certa tristeza interior que
o habita, também um pouco de Harry Langdon, talvez até uma pitada da
ingenuidade de Jerry Lewis, e alguma tradição francesa, seguramente via Max
Linder. Quem escolhe como referência alguns dos melhores, não pode passar
despercebido. Mas para ser grande é preciso ter uma personalidade própria,
passar por todas essas influências mas criar uma obra pessoal, única. Pierre
Étaix conseguiu-o e se, hoje em dia, não é mais conhecido isso deve-se
seguramente a problemas vários que impediram os seus filmes de serem mostrados
ao público durante décadas, em virtude de questões legais inultrapassáveis até
há pouco. Só muito recentemente, para grande alegria dos seus fãs incondicionais,
surgiu no mercado francês uma caixa com toda a sua obra cinematográfica,
editada em DVD. São cinco longas-metragens e várias curtas que voltam a
recordar um dos cineastas mais interessantes do cinema francês no domínio da
comédia. Já agora, acrescente-se que a edição é muito cuidada, fazendo-se
acompanhar de um livro de design esmerado que, infelizmente, pouca literatura informativa
traz sobre o autor. Prevalece a fotografia sobre o texto, o que não satisfaz a
necessidade de quem quer saber mais sobre a vida e a obra de Pierre Étaix. Mas
o relançamento da obra deste cineasta e actor magnífico parece justificar
finalmente um interesse mundial. A reposição das suas obras nos EUA, no Canadá
e em França, para só citar alguns locais, tem sido calorosa. Razão de
satisfação dupla para quem nunca o esqueceu desde os tempos em que viu pela vez
primeira as suas obras no cinema.
“Le Soupirant”,
de 1962, é a sua primeira longa-metragem e foi com espanto que foi recebida. É
óbvia desde início a homenagem ao cinema mudo, na construção do gag, sobretudo
visual, e pela quase ausência de diálogos. Mas não de sons, dado que o
tratamento da banda sonora é complexo e extremamente curioso para a definição
do humor. O início do filme é imediatamente desconcertante. Uma imagem que tudo
indica ser um foguetão a descolar de alguma base de lançamentos, mas que se
descobre depois que se trata do local de trabalho de um fanático por
astrologia. Numa casa apalaçada, no interior de uma família nitidamente
abonada, Pierre vive envolto no fumo dos seus cigarros e encerrado no seu
quarto transformado num bunker de um apaixonado pela conquista do espaço. A mãe
pinta, o pai bebe às escondidas, e uma sueca suspira por uma atenção de Pierre,
que só tem olhos para o telescópio. Até que um dia os pais se revoltam e chamam
a atenção do filho para a necessidade de ele se casar e iniciar uma vida
normal. O mais rápido será perguntar à inquilina sueca que passa uns tempos em
sua casa se quer casar com ele, mas a bela nórdica não domina a língua e não
percebe as intenções do tímido e distraído lunático. Sai assim para a noite
parisiense, em busca de uma mulher que queira casar com ele, e as peripécias
são muitas, divertidas, oscilando entre o equívoco e o mal-entendido. Mas o
humor é sempre de uma elegância e delicadeza invulgares, os gags construídos
com uma sobriedade e rigor admiráveis, a economia de meios é absoluta e os
resultados magníficos. “Le Soupirant” é definitivamente um filme admirável,
onde a candura do protagonista se mescla a uma crítica social de fina
observação, atenta ao pormenor, sibilina no remoque, mas nunca descuidando uma
certa ternura para com as figuras visadas. A crítica expressa ao mundo do
espectáculo e à forma como se aproveita a vedeta com fins comerciais é de uma
evidente clareza e justeza.
O rigor da
escrita de Piere Étaix é raro numa primeira obra. A forma como compõe a figura
de Pierre, sobre a qual assenta todo o filme, é notável, criando uma personagem
lunática, cortada da realidade que, por imposição familiar, se vê obrigada a
sair do seu casulo espacial, para se embrenhar na realidade, à procura do amor.
Mas o amor não se procura, encontra-se e por vezes está ali mesmo ao virar da
esquina ou mesmo paredes meias, ou frente aos olhos que, habituados a
perscrutar o infinito, ignoram a realidade imediata.
Tendo
começado a sua carreira como artista plástico, depois palhaço de circo, Etaix
era um artista completo, dominando várias técnicas e exigindo de si sempre a
perfeição. Um guião de um filme seu, a que chamava a “bíblia” durante a rodagem,
agrupava a planificação técnica, o storyboard, com os desenhos de todos os
planos do filme, retratos de personagens, descrições, etc.
O APAIXONADO
Título original: Le Soupirant
Realização: Pierre Étaix (França, 1962);
Argumento: Pierre Étaix & Jean-Claude Carrière; Produção: Paul Claudon;
Música: Jean Paillaud; Fotografia (p/b): Pierre Levent; Montagem: Pierre
Gillette; Design de produção: Raymond Tournon; Maquilhagem: Anatole Paris;
Direcção de Produção: Tonio Suné; Assistentes de realização: André Bureau,
Claude Pierre-Bloch; Departamento de arte: Jean-Claude Carrière; Som: Jean
Bertrand, Jean Nény; Companhias de produção: C.A.P.A.C., Cocinor, Copra Films; Intérpretes: Pierre Étaix (Pierre),
France Arnel (Stella), Laurence Lignières (Laurence), Claude Massot (pai de
Pierre), Denise Péronne (mãe de Pierre), Karin VeselyIlka), Robert Blome,
Pierre Maguelon, Dominique Clément, Dora Diana, Bernard Dumaine, Armelle Engel,
Édouard Francomme, Jeannette François, Lucien Frégis, Brigitte Juslin, Patrice
Laffont, Kim Lokay, Georges Loriot, Jean-Pierre Moutier, Sally Pearce, Guy
Piérauld, Gilles Rosset, Robert Sabatier, Roger Trapp, Anna Abigaël, Béatrice
Arnac, Charles Bayard, Pierre Vernet, etc. Duração: 83 minutos;
Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos;
Data de estreia em Portugal: 14 de Janeiro de 1964.
PIERRE ÉTAIX (1928 -)
Pierre Etaix
nasceu em Roanne, França, no dia 23 de Novembro de 1928. Como muitos outros
artistas que se dedicaram ao humor, é um homem de sete ofícios: actor,
realizador, argumentista, dramaturgo, clown, desenhador e muito mais. Começou a
carreira como desenhador de vitrais, no atelier de Théodore-Gérard Hanssen.
Passa a viver em Paris, inicialmente do seu talento de ilustrador, e também já
do humor, em cabarets e music-halls, como “Le Cheval d'Or”, “Les Trois
Baudets”, “A.B.C”, “Alhambra”, “Bobino” e “Olympia”, ou como palhaço de circo,
de seu nome Nino. Em 1954, trabalha com Jacques Tati em “O Meu Tio” e ganha o
gosto pelo cinema. “Rupture” é a curta-metragem de estreia, que ergue com a
colaboração de Jean-Claude Carrière. Ganha o Oscar de Melhor Curta-Metragem de
1963, ano em que se abalança na longa-metragem com “Le Soupirant”, a que se
seguem “Yoyo”, uma homenagem ao circo, “Tant qu'on a la santé” (1965), “Le
Grand Amour” (1968) e “Pays de cocagne” (1969). Segue-se uma longa travessia do
deserto, apenas quebrada por algumas aparições como actor em filmes de outros
cineastas. Funda a “École Nationale de Cirque” (1973), com Annie Fratellini,
com quem casara em 1969. Em 1985, escreve uma peça de teatro, “L'âge de
monsieur est avancée”, espécie de homenagem a Sacha Guitry e à arte do teatro,
que mais tarde irá interpretar no teatro e realizar e interpretar para a TV. O
seu último trabalho como realizador (1989) é um espectáculo utilizando o
omnimax, uma encomenda da La Géode em la Villette para celebrar o bicentenário
da Revolução.
Entretanto, a
vida de Pierre Étaix não era fácil. Um litígio judicial com a empresa produtora
dos seus filmes impediu-os de circularem, quer em salas ou em dvd. A Fondation
Groupama Gan pour le Cinéma restaura em 2007 “Yoyo”, apresenta-o em Cannes, mas
o boicote renasce até 2011, quando os tribunais dão razão ao cineasta e as
obras são recolocadas em distribuição.
Segue-se a
consagração universal: em 2009 uma retrospectiva, no Grand Lyon, “Vive Pierre
Étaix!”; em 2010, um novo espectáculo de music-hall “Miousik Papillon”, em
tournée por várias cidades e na TV; em 16 de Novembro de 2011, a Academy Of
Motion Picture Arts And Sciences, de Hollywood, homenageia-o em Los Angeles,
com uma cerimónia, "Pierre Étaix: The Laughter Returns"; em 2012,
no Slapstick Festival, recebe o prémio
“Aardman/Slapstick” e, no mesmo ano, o
prémio Jean Mitry no Festival de Pordenone (Itália). Os seus filmes voltam às
salas nos EUA e Canadá, com grande sucesso e sai uma caixa com a sua obra
integral em DVD. Ainda em 2012, volta à pista e é-lhe conferido o grau de Comandante
da “Ordre des Arts et Lettres”. No ano seguinte, recebe o Grande Prémio da SACD
(Société des Auteurs et Compositeurs Dramatiques) pelo conjunto da sua obra e
em Março de 2015 é-lhe atribuído o prémio de carreira durante a cerimónia do
10º aniversário do Prémio Henri Langlois & Rencontres Internationales du
Cinéma de Patrimoine.
Filmografia
Como realizador: 1961:
Rupture (c-m); 1962: Heureux Anniversaire (C-m); Le Soupirant (O Apaixonado);
1965: Yoyo (Yoyo); 1966: Tant qu'on a la
santé (Entretanto Haja Saúde); En pleine forme (c-m; inédita até 2010); 1969:
Le Grand Amour (O Grande Amor); 1971: Pays de cocagne; 1987: L'Âge de monsieur
est avancé (TV); 1987: Souris noire - episódio “Le Rapt” (TV); 1988: Le
Cauchemar de Méliès (TV); 1989: J'écris dans l'espace.
Como actor / Principais
filmes: 1956: Mon oncle (O Meu Tio),
de Jacques Tati; 1959: Pickpocket (O Carteirista), de Robert Bresson; 1960:
Tire-au-flanc 62, de Claude de Givray; 1961: Rupture, de Pierre Étaix; 1962:
Une grosse tête (Chega-lhe que ainda mexe!), de Claude de Givray; Le Pèlerinage,
de Jean L'Hôte; Heureux anniversaire, de Pierre Étaix; 1963: Le Soupirant (O
Apaixonado), de Pierre Étaix; 1964: Yoyo (Yoyo), de Pierre Étaix; 1966: Tant
qu'on a la santé (Entretanto Haja Saúde), de Pierre Étaix; 1966 Le Voleur (O
Ladrão de Paris), de Louis Malle; 1968: Le Grand Amour (O Grande Amor), de
Pierre Étaix; 1971: Les Clowns, de Federico Fellini; 1972: The Day the Clown
Cried, de Jerry Lewis; 1973: Bel Ordure, de Jean Marbœuf ; 1974: Sérieux comme
le plaisi,r de Robert Benayoun; 1985: Max mon amour (Max, Meu Amor), de Nagisa
Oshima; 1987: L'âge de monsieur est avancé, de Pierre Étaix; 1989: Henry &
June (Henry e June), de Philip Kaufman; 2006: Jardins en automne (Jardins no
Outono), de Otar Iosseliani; 2009: Micmacs à tire-larigot (Micmacs - Uma
Brilhante Confusão), de Jean-Pierre Jeunet; 2010: Chantrapas, de Otar
Iosseliani; 2011: Le Havre, de Aki Kaurismäki; 2015: Chant d'hiver, de Otar
Iosseliani
Na televisão: 1980: Lundi, téléfilm - la
voyante; 1983: L'Étrange château du docteur Lerne; 1983: La Métamorphose, de
Jean-Daniel Verhaeghe; 1984: L'Aide-mémoire, de Pierre Boutron; 1987: Les
Idiots, de Jean-Daniel Verhaeghe; 1989: Bouvard et Pécuchet de Jean-Daniel
Verhaeghe; 2010: Groland magzine (TV);
Teatro: 1972: À quoi on joue?, de
Pierre Étaix, Théâtre Hébertot; 1983: L'Âge de Monsieur est avancé, de Pierre
Étaix, Comédie des Champs Élysées; 2010: Miousik Papillon, de Pierre Étaix,
Théâtre de Vidy
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