DUAS
FERAS (1938)
O professor David Huxley (Cary Grant), a
quem chamam zoólogo, mas que nos nossos dias seria um paleontólogo, que se
dedica a recuperar o monumental esqueleto de um dinossauro, no Museu de
História Natural, tem o casamento marcado para o dia seguinte, mas esse facto
parece não o preocupar muito. Entusiasmado está com a chegada do último osso
que lhe falta para terminar a sua gigantesca empreitada. Por outro lado, o
museu vive com dificuldades e há uma hipótese de mecenato, vindo de alguém,
milionário, que está disposto a atribuir uma choruda quantia para a prossecução
das tarefas de David. No dia seguinte, mas antes de casar, David irá
encontrar-se com o intermediário que o levará até junto do desconhecido
benfeitor, num campo de golfe. Pelo meio aparece a azougada Susan Vance
(Katherine Hepburn), por acaso sobrinha da milionária (o que é desconhecido
pelo zoólogo), que se intromete na partida e na vida do noivo.
De peripécia em peripécia, que mete um leopardo
pelo meio, casacas e vestidos rasgados, casamentos anulados e a derrocada do
esqueleto do dinossauro, “Duas Feras” mostra como se constrói com genialidade
uma comédia a que os norte-americanos chamaram “screwball comedy”, e que se
poderá definir como “comédias de situações inesperadas”, com características
muito pouco definidas, mas onde surgem normalmente jogos de equívocos,
situações dúbias, um clima romântico, com mulheres de invulgar desenvoltura,
acção rápida e tumultuosa, muitas vezes rodado em redor do casamento ou de
parelhas que se fazem e desfazem em velhos e novos envolvimentos emocionais. Um
importante crítico de cinema, Andrew Sarris, classificou este tipo de comédia
como "sexual sem o sexo". Diríamos nós que se trata de comédias
apimentadas, carregadas de subterfúgios para não abordar directamente o sexo
(facto proibido pelo austero código de censura Hays), mas profundamente
eróticas nas sugestões de diálogos e de situações. Quando o sofisticado vestido
de noite de Susan Vance se rasga atrás, deixando a descoberto o que não o devia
estar, David Huxley cola-se a ela para impedir que os frequentadores do luxuoso
restaurante usufruam de algo mais do que é oferecido nas ementas. Mas
obviamente que a situação desperta sorrisos e deixa adivinhar outras
suposições, o que aflige Susan, mas não a afasta dos seus propósitos, ela que
se apaixonou pelo paleontólogo e havia jurado a si própria que o haveria de caçar,
declarando mesmo: "Este é o homem com quem vou casar. Ele ainda não sabe,
mas eu vou casar com ele".
Curiosidade. Esta sequência do vestido
rasgado inspira-se num caso real acontecido a Cary Grant, que ele contou ao
realizador e este aproveitou para o filme. Grant contara que, uma noite,
durante uma sessão especial no Roxy Theater, ao levantar-se da cadeira, o seu
sapato prendeu-se no vestido de uma senhora que seguia à sua frente,
obrigando-o a acompanhá-la atrás dela, para não rasgar o tecido.
Mulheres decididas é o que abunda na
“screwball comedy”. Basta recordar alguns títulos dos exemplos mais famosos
deste género: “The Philadelphia Story”, “Holiday” e “Sylvya Scarlet”, todos de
George Cukor, “His Girl Friday” e “I Was a Male War Bride”, ambos de Howard
Hawks, “It Happened One Night”, de Frank Capra, “My Man Godfrey”, de Gregory
LaCava, “The Lady Eve”, de Preston Sturges, entre muitos outros passíveis de
serem citados, sobretudo entre as décadas de 30 e 40. Mas há exemplos mais
recentes, como “What’s up Doc?”, de Peter Bogdanovich, que de certa forma
retoma o tema de “Bringing Up Baby”, ou ainda o fabuloso “Some Like It Hot”, de
Billy Wilder, não esquecendo “Man's Favorite Sport?”, de novo de Howard Hawks.
Normalmente os homens não dominam os
cordelinhos da acção que as mulheres controlam, e nalguns casos têm mesmo de
passar por momentos de algum embaraço, quando aparecem travestidos. Em “Duas
Feras”, Cary Grant surge trajando um vaporoso robe de senhora, e é deste modo
que se confronta com a tia milionária de Susan. As mulheres detêm o dinheiro (a
tia) e manipulam os cordelinhos emocionais (a sobrinha). Os homens vivem a
sonhar com ossos do passado ou jogam golfe distraidamente, julgando que elas
são o seu “desporto favorito”. Há ainda que reconhecer um outro efeito neste
tipo de comédias que terá possivelmente a ver com a fase que os atravessavam
(ou acabavam de atravessar), a Grande Depressão, cujas responsabilidades o
público mais popular não podia deixar de atribuir às classes sociais mais abastadas.
Nestas comédias de embustes e atrapalhações sucessivas, o espectador
divertia-se com as dificuldades vividas pelos ricos, funcionando o facto num
duplo registo: a diversão afastava-o da aspereza do dia-a-dia e,
simultaneamente, vingava-se dos poderosos que conheciam situações incómodas, no
mínimo.
Howard Hawks foi um dos grandes
cineastas do cinema clássico americano, tendo assinado alguns dos grandes
filmes da sua História, a começar desde logo por “Scarface” que, em 1932,
inaugurava um género novo, o filme de gangsters, passando pelo “filme negro”,
de “To Have and Have Not” a “The Big Sleep”, pelo western “The Big Sky”, “Red
River”, “Rio Bravo” ou “El Dorado”, pelo filme de aventuras, “Hatari”, o filme
de guerra, “Sargeant York”, o filme de aviação, “The Dawn Patrol”, “Ceiling
Zero”, “Air Force” (entre outros, Hawks era um apaixonado pela aviação), o
filme histórico, “Land of the Pharaohs” (que ele considerava o seu pior filme,
mas que mantinha muitos aspectos interessantes), o musical, “Gentlemen Prefer
Blondes”, e tantos outros. Não era o que se pode chamar um especialista num
determinado tipo de filmes, era antes um autor que tornava seus todos os
argumentos (ou quase todos) em que tocava. Tinha uma forma muito especial de
olhar a vida, as mulheres, a amizade entre os homens, criando um ritmo
trepidante, nervoso, vibrante, mas sempre elegante e subtil, um criador de
atmosfera que se preocupava menos com a “história” e mais com a densidade das
personagens e das situações. O que, em “Duas Feras”, é valorizado sobremaneira
pela presença de Katherine Hepburn e Cary Grant, ambos magníficos nas suas
composições. É curioso referir que, por esta época, Katherine Hepburn era
considerada “veneno nas bilheteiras”, por ter somado alguns fracassos
sucessivos, e “Bringing up Baby” não seguiu o habitual: foi um enorme sucesso
na altura da sua estreia, tornando-se mais tarde uma das comédias mais
valorizadas da história do cinema. A revista “Entertainment Weekly”
considerou-a a 24ª entre as melhores obras da História do cinema, o “American
Film Intitute” colocou-a em 88º lugar numa listagem idêntica, a revista “Première”
inclui-a entre as 50 melhores comédias de sempre. De resto, em qualquer lista
que se consulte sobre as “melhores comédias de sempre” aparece “Duas Feras”.
Para o sucesso deste filme, porém, há
que sublinhar a inteligência e a sensibilidade demonstrada pela dupla de
argumentistas, Dudley Nichols e Hagar Wilde, que partiram de uma história de
Hagar Wilde e construíram uma magnífica base de trabalho para o cineasta e os
seus intérpretes. Mas não só isso: durante a rodagem, Dudley Nichols e Hagar
Wilde apaixonaram-se, enquanto escreviam a obra. Deve ter ajudado…
Sobre o leopardo, uma última palavra:
não só se mostra um actor ao nível dos seus comparsas, como era uma boa
companhia para Katherine Hepburn, que confraternizava facilmente com ele. O
mesmo não se pode dizer de Cary Grant, que vivia aterrado com o bicho e pediu
mesmo um duplo para as cenas em que estavam mais próximos. Também aqui o actor
se mostrava um homem mais intelectualizado do que um elemento de acção (Howard
Hawks dera-lhe como exemplo Harold Lloyd, até ao ponto de lhe colocar uns
óculos mais ou menos idênticos aos do famoso cómico do mudo). Na cena inicial
do filme, vamos encontrá-lo no alto de um escadote, de olhar perdido, e alguém
diz: “Cuidado, silêncio, o dr. Huxley está a pensar”. Tornava-se assim o
“desporto favorito da mulher”.
DUAS
FERAS
Título
original: Bringing Up Baby
Realização: Howard Hawks (EUA, 1938); Argumento: Dudley Nichols, Hagar Wilde,
segundo história de Hagar Wilde; Produção: Cliff Reid, Howard Hawks; Música:
Roy Webb; Fotografia (cor): Russell Metty; Montagem: George Hively; Direcção
artística: Van Nest Polglase; Guarda-roupa: Howard Greer; Maquilhagem: Mel
Berns; Direcção de Produção: J.R. Crone, George Rogell; Assistentes de
realização: Edward Donahue; Departamento de arte: Perry Ferguson, Darrell
Silvera; Som: John L. Cass; Efeitos especiais: Vernon L. Walker; Companhias de
produção: PrRKO Radio Pictures (Howard Hawks' Production); Intérpretes: Katharine Hepburn (Susan), Cary Grant (David), Charles
Ruggles (Major Applegate), Walter Catlett (Slocum), Barry Fitzgerald (Mr.
Gogarty), May Robson (Tia Elizabeth), Fritz Feld (Dr. Lehman), Leona Roberts
(Mrs. Gogarty), George Irving (Mr. Peabody), Tala Birell (Mrs. Lehman),
Virginia Walker (Alice Swallow), John Kelly (Elmer), Ruth Adler, Adeline
Ashbury, Asta, William 'Billy' Benedict, Billy Bevan, Stanley Blystone, Ward
Bond, Ralph Brooks, Harry Campbell, Jack Carson, D'Arcy Corrigan, Evelyne
Eager, Judith Ford, Billy Franey, Jack Gardner, Edward Gargan, Frances Gifford,
Geraldine Hall, George Humbert, Karl 'Karchy' Kosiczky, Richard Lane, Buck
Mack, Frank Marlowe, Jeanne Martel, Pat O'Malley, Eleanor Peterson, Buster Slaven,
Larry Steers, Pat West, Cynthia Westlake, etc. Duração: 102 minutos;
Distribuição em Portugal: Radio Filmes (1938); Distribuição em Portugal (DVD): Costa
do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 28
de Março de 1938.
Katharina Hepburn e Howard Hawks
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