segunda-feira, 11 de julho de 2016

SESSÃO 32 - 12 DE JULHO DE 2016


DUAS FERAS (1938)

O professor David Huxley (Cary Grant), a quem chamam zoólogo, mas que nos nossos dias seria um paleontólogo, que se dedica a recuperar o monumental esqueleto de um dinossauro, no Museu de História Natural, tem o casamento marcado para o dia seguinte, mas esse facto parece não o preocupar muito. Entusiasmado está com a chegada do último osso que lhe falta para terminar a sua gigantesca empreitada. Por outro lado, o museu vive com dificuldades e há uma hipótese de mecenato, vindo de alguém, milionário, que está disposto a atribuir uma choruda quantia para a prossecução das tarefas de David. No dia seguinte, mas antes de casar, David irá encontrar-se com o intermediário que o levará até junto do desconhecido benfeitor, num campo de golfe. Pelo meio aparece a azougada Susan Vance (Katherine Hepburn), por acaso sobrinha da milionária (o que é desconhecido pelo zoólogo), que se intromete na partida e na vida do noivo.
De peripécia em peripécia, que mete um leopardo pelo meio, casacas e vestidos rasgados, casamentos anulados e a derrocada do esqueleto do dinossauro, “Duas Feras” mostra como se constrói com genialidade uma comédia a que os norte-americanos chamaram “screwball comedy”, e que se poderá definir como “comédias de situações inesperadas”, com características muito pouco definidas, mas onde surgem normalmente jogos de equívocos, situações dúbias, um clima romântico, com mulheres de invulgar desenvoltura, acção rápida e tumultuosa, muitas vezes rodado em redor do casamento ou de parelhas que se fazem e desfazem em velhos e novos envolvimentos emocionais. Um importante crítico de cinema, Andrew Sarris, classificou este tipo de comédia como "sexual sem o sexo". Diríamos nós que se trata de comédias apimentadas, carregadas de subterfúgios para não abordar directamente o sexo (facto proibido pelo austero código de censura Hays), mas profundamente eróticas nas sugestões de diálogos e de situações. Quando o sofisticado vestido de noite de Susan Vance se rasga atrás, deixando a descoberto o que não o devia estar, David Huxley cola-se a ela para impedir que os frequentadores do luxuoso restaurante usufruam de algo mais do que é oferecido nas ementas. Mas obviamente que a situação desperta sorrisos e deixa adivinhar outras suposições, o que aflige Susan, mas não a afasta dos seus propósitos, ela que se apaixonou pelo paleontólogo e havia jurado a si própria que o haveria de caçar, declarando mesmo: "Este é o homem com quem vou casar. Ele ainda não sabe, mas eu vou casar com ele".
Curiosidade. Esta sequência do vestido rasgado inspira-se num caso real acontecido a Cary Grant, que ele contou ao realizador e este aproveitou para o filme. Grant contara que, uma noite, durante uma sessão especial no Roxy Theater, ao levantar-se da cadeira, o seu sapato prendeu-se no vestido de uma senhora que seguia à sua frente, obrigando-o a acompanhá-la atrás dela, para não rasgar o tecido.


Mulheres decididas é o que abunda na “screwball comedy”. Basta recordar alguns títulos dos exemplos mais famosos deste género: “The Philadelphia Story”, “Holiday” e “Sylvya Scarlet”, todos de George Cukor, “His Girl Friday” e “I Was a Male War Bride”, ambos de Howard Hawks, “It Happened One Night”, de Frank Capra, “My Man Godfrey”, de Gregory LaCava, “The Lady Eve”, de Preston Sturges, entre muitos outros passíveis de serem citados, sobretudo entre as décadas de 30 e 40. Mas há exemplos mais recentes, como “What’s up Doc?”, de Peter Bogdanovich, que de certa forma retoma o tema de “Bringing Up Baby”, ou ainda o fabuloso “Some Like It Hot”, de Billy Wilder, não esquecendo “Man's Favorite Sport?”, de novo de Howard Hawks.
Normalmente os homens não dominam os cordelinhos da acção que as mulheres controlam, e nalguns casos têm mesmo de passar por momentos de algum embaraço, quando aparecem travestidos. Em “Duas Feras”, Cary Grant surge trajando um vaporoso robe de senhora, e é deste modo que se confronta com a tia milionária de Susan. As mulheres detêm o dinheiro (a tia) e manipulam os cordelinhos emocionais (a sobrinha). Os homens vivem a sonhar com ossos do passado ou jogam golfe distraidamente, julgando que elas são o seu “desporto favorito”. Há ainda que reconhecer um outro efeito neste tipo de comédias que terá possivelmente a ver com a fase que os atravessavam (ou acabavam de atravessar), a Grande Depressão, cujas responsabilidades o público mais popular não podia deixar de atribuir às classes sociais mais abastadas. Nestas comédias de embustes e atrapalhações sucessivas, o espectador divertia-se com as dificuldades vividas pelos ricos, funcionando o facto num duplo registo: a diversão afastava-o da aspereza do dia-a-dia e, simultaneamente, vingava-se dos poderosos que conheciam situações incómodas, no mínimo.


Howard Hawks foi um dos grandes cineastas do cinema clássico americano, tendo assinado alguns dos grandes filmes da sua História, a começar desde logo por “Scarface” que, em 1932, inaugurava um género novo, o filme de gangsters, passando pelo “filme negro”, de “To Have and Have Not” a “The Big Sleep”, pelo western “The Big Sky”, “Red River”, “Rio Bravo” ou “El Dorado”, pelo filme de aventuras, “Hatari”, o filme de guerra, “Sargeant York”, o filme de aviação, “The Dawn Patrol”, “Ceiling Zero”, “Air Force” (entre outros, Hawks era um apaixonado pela aviação), o filme histórico, “Land of the Pharaohs” (que ele considerava o seu pior filme, mas que mantinha muitos aspectos interessantes), o musical, “Gentlemen Prefer Blondes”, e tantos outros. Não era o que se pode chamar um especialista num determinado tipo de filmes, era antes um autor que tornava seus todos os argumentos (ou quase todos) em que tocava. Tinha uma forma muito especial de olhar a vida, as mulheres, a amizade entre os homens, criando um ritmo trepidante, nervoso, vibrante, mas sempre elegante e subtil, um criador de atmosfera que se preocupava menos com a “história” e mais com a densidade das personagens e das situações. O que, em “Duas Feras”, é valorizado sobremaneira pela presença de Katherine Hepburn e Cary Grant, ambos magníficos nas suas composições. É curioso referir que, por esta época, Katherine Hepburn era considerada “veneno nas bilheteiras”, por ter somado alguns fracassos sucessivos, e “Bringing up Baby” não seguiu o habitual: foi um enorme sucesso na altura da sua estreia, tornando-se mais tarde uma das comédias mais valorizadas da história do cinema. A revista “Entertainment Weekly” considerou-a a 24ª entre as melhores obras da História do cinema, o “American Film Intitute” colocou-a em 88º lugar numa listagem idêntica, a revista “Première” inclui-a entre as 50 melhores comédias de sempre. De resto, em qualquer lista que se consulte sobre as “melhores comédias de sempre” aparece “Duas Feras”.
Para o sucesso deste filme, porém, há que sublinhar a inteligência e a sensibilidade demonstrada pela dupla de argumentistas, Dudley Nichols e Hagar Wilde, que partiram de uma história de Hagar Wilde e construíram uma magnífica base de trabalho para o cineasta e os seus intérpretes. Mas não só isso: durante a rodagem, Dudley Nichols e Hagar Wilde apaixonaram-se, enquanto escreviam a obra. Deve ter ajudado…
Sobre o leopardo, uma última palavra: não só se mostra um actor ao nível dos seus comparsas, como era uma boa companhia para Katherine Hepburn, que confraternizava facilmente com ele. O mesmo não se pode dizer de Cary Grant, que vivia aterrado com o bicho e pediu mesmo um duplo para as cenas em que estavam mais próximos. Também aqui o actor se mostrava um homem mais intelectualizado do que um elemento de acção (Howard Hawks dera-lhe como exemplo Harold Lloyd, até ao ponto de lhe colocar uns óculos mais ou menos idênticos aos do famoso cómico do mudo). Na cena inicial do filme, vamos encontrá-lo no alto de um escadote, de olhar perdido, e alguém diz: “Cuidado, silêncio, o dr. Huxley está a pensar”. Tornava-se assim o “desporto favorito da mulher”.


DUAS FERAS
Título original: Bringing Up Baby

Realização: Howard Hawks (EUA, 1938); Argumento: Dudley Nichols, Hagar Wilde, segundo história de Hagar Wilde; Produção: Cliff Reid, Howard Hawks; Música: Roy Webb; Fotografia (cor): Russell Metty; Montagem: George Hively; Direcção artística: Van Nest Polglase; Guarda-roupa: Howard Greer; Maquilhagem: Mel Berns; Direcção de Produção: J.R. Crone, George Rogell; Assistentes de realização: Edward Donahue; Departamento de arte: Perry Ferguson, Darrell Silvera; Som: John L. Cass; Efeitos especiais: Vernon L. Walker; Companhias de produção: PrRKO Radio Pictures (Howard Hawks' Production); Intérpretes: Katharine Hepburn (Susan), Cary Grant (David), Charles Ruggles (Major Applegate), Walter Catlett (Slocum), Barry Fitzgerald (Mr. Gogarty), May Robson (Tia Elizabeth), Fritz Feld (Dr. Lehman), Leona Roberts (Mrs. Gogarty), George Irving (Mr. Peabody), Tala Birell (Mrs. Lehman), Virginia Walker (Alice Swallow), John Kelly (Elmer), Ruth Adler, Adeline Ashbury, Asta, William 'Billy' Benedict, Billy Bevan, Stanley Blystone, Ward Bond, Ralph Brooks, Harry Campbell, Jack Carson, D'Arcy Corrigan, Evelyne Eager, Judith Ford, Billy Franey, Jack Gardner, Edward Gargan, Frances Gifford, Geraldine Hall, George Humbert, Karl 'Karchy' Kosiczky, Richard Lane, Buck Mack, Frank Marlowe, Jeanne Martel, Pat O'Malley, Eleanor Peterson, Buster Slaven, Larry Steers, Pat West, Cynthia Westlake, etc. Duração: 102 minutos; Distribuição em Portugal: Radio Filmes (1938); Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 28 de Março de 1938.

Katharina Hepburn e Howard Hawks

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