O EXTRAVAGANTE SENHOR RUGGLES (1935)
Foi George Bernard Shaw quem disse que
“ingleses e americanos são dois povos separados pela mesma língua”. Não só,
como se poderá ver pela excelente comédia de Leo McCarey, “Ruggles of Red Gap”,
que parece igualmente ilustrar algumas considerações de Alexis de Tocqueville
que, na sua obra dedicada à América, analisa os diferentes comportamentos das
relações entre senhores e criados dos dois lados do Atlântico.
O filme baseia-se num romance de Harry
Leon Wilson, que conheceu grande sucesso aquando do seu lançamento, em 1915. No
mesmo ano, subiu a cena numa adaptação teatral, em musical, com escrita da
responsabilidade de Harrison Rhoades, poemas de Harold Atteridge e música de
Sigmund Romberg. Estreada no Fulton Theater, precisamente no dia 25 de
Dezembro, data festiva que se conciliava bem com o tom geral da obra, conheceu
33 representações. Digamos que cumpriu a época de Natal e Ano Novo.
Também em cinema surgiram versões
anteriores a esta assinada por Leo McCarey. Em 1918, “Ruggles of Red Gap” foi
assinado por Lawrence C. Windom e tinha Taylor Holmes como protagonista. Em
1923, com idêntico título, estreou-se outra adaptação, dirigida por James
Cruze, com um notável Edward Everett Horton como primeira figura. Mas o elenco
da realização de 1935 é absolutamente inesquecível. Charles Laughton
considerava mesmo que esta tinha sido a sua maior interpretação e este era o
seu filme preferido, entre todos quantos tinha na sua vasta (e brilhante) filmografia.
Há, todavia, uma outra versão, ainda de muito boa qualidade, interpretada pelo
popular Bob Hope, rodada em 1950, “O Homem das Calças Pardas” (Fancy Pants),
com direcção de George Marshall, e ainda no elenco Lucille Ball e Bruce Cabot.
Na televisão, são diversas as versões: “The Prudential Family Playhouse”
(1950), “Ruggles of Red Gap” (1951), “Producers' Showcase” (1954) ou “Ruggles
of Red Gap” (1957) e as versões teatrais também abundam. Também na rádio
Ruggles se tornou popular. A “Lux Radio Theater" apresentou uma versão de
60 minutos no dia 10 de Julho de 1939 com Charles Ruggles, Charles Laughton e
Zasu Pitts revivendo os seus papéis do filme. Houve ainda outras passagens pela
rádio norte-americana. "The Screen Guild Theater" emitiu uma em Dezembro
de 1945 e "Academy Award Theater" lançou uma outra em Junho de 1946,
sempre com Charles Laughton e Charles Ruggles nos principais papéis.
Leo McCarey era, entre os anos 30 e 50,
um dos maiores realizadores de comédias, único rival à altura de Frank Capra.
Capra resistiu melhor ao tempo, mas McCarey é, neste aspecto, um injustiçado.
Era um realizador de enorme talento, com uma sensibilidade muito própria para a
comédia. Nascido em Los Angeles, Califórnia, EUA, a 3 de Outubro de 1896, vindo
a falecer em Santa Mónica, Califórnia, EUA, a 5 de Julho de 1969, Thomas Leo
McCarey iniciou-se no cinema na década de 20, assinando um vasto conjunto de
curtas-metragens, muitas delas de humor. Dirigiu obras de Bucha e Estica, W.C.
Fields e dos Irmãos Marx (Duck Soup – “Os Grandes Aldrabões”, 1933), partindo
depois para uma carreira de grandes sucessos. Foi um dos poucos cineastas que
ganhou os três mais importantes Oscars pelo mesmo filme, Melhor Filme, Melhor
Realização e Melhor Argumento (Going My Way – “O Bom Pastor”, 1944). Os outros
cineastas que se lhe igualam são Billy Wilder, Francis Ford Coppola, James L.
Brooks, Peter Jackson, Joel Coen /Ethan Coen, e Alejandro González Iñárritu.
Outros títulos importantes na sua filmografia são “Com a Verdade Me Enganas” (1937),
“Make Way for Tomorrow” (1937), “Os Sinos de Santa Maria” (1945) ou “O Grande
Amor da Minha Vida” (1957). A sua sensibilidade para a comédia era igualada
pela emoção que colocava nos seus melodramas.
Ruggles (Charles Laughton) é mordomo de
um nobre inglês, George (Roland Young) quando este o perde ao jogo para um
americano latifundiário, Egbert Floud (Charles Ruggles), casado com uma
expansiva e desabrida Effie Floud (Mary Boland). O casal encontra-se a passar
férias em Inglaterra e, quando regressa a casa, leva na bagagem o pomposo e
rigoroso mordomo britânico, com toda a sua herança hierárquica e a etiqueta
ostensiva de quem sabe qual é o seu lugar e faz questão de o demonstrar. O
choque com a cultura norte-americana é brutal. Nos EUA os costumes são
absolutamente diferentes, mesmo antagónicos, e ainda por cima Ruggles vai dar
com uma família desregrada e boémia. Há ainda a acrescentar o facto de o filme
ser de 1935, uma época de pleno New Deal, onde o cinema não tendia a mostrar
bem a realidade, mas a indicar caminhos ideais para uma sã convivência social.
Com o presidente Roosevelt a procurar levantar o país da ruína da Grande
Depressão, o que importava era criar optimismo, mostrar as virtudes da
democracia americana e insuflar esperança em melhores dias. Este é, pois, um
filme de utopia, não uma obra realista que mostre a opressão dos grandes
latifundiários, muitos deles racistas e fortemente classicistas. Em teoria, os
EUA eram uma democracia onde todos eram (deveriam ser) iguais. Ruggles a principio
estranha, mas depois os usos e costumes da casa entranham-se. De tal forma que
acaba mesmo por recitar, quase no final, o célere discurso que Lincoln
pronunciou em Gettysburg, onde exaltava de forma eloquente as virtudes da
democracia e da sociedade americana. Charles Laughton, tempos depois, confessou
que a declamação deste discurso foi "one of the most moving things that
ever happened to me", o que o levava por vezes a repeti-lo em
circunstâncias festivas (quando terminaram as filmagens de “Revolta na Bounty”
(1935) ou “Nossa Senhora de Paris” (1939) voltou a emocionar os companheiros de
elenco e equipas técnicas com esta notável obra de oratória, ainda por cima
admiravelmente interpretada por um actor de invulgar talento).
Foi Charles Laughton quem pediu aos
produtores para ser Leo McCarey a dirigir o filme, pois pretendia qua a sua
estreia na comédia ficasse assinalada por um prestigiado autor que havia
dirigido, pouco antes, uma comédia dos Marx Brothers que o havia impressionado
imenso (Os Grandes Aldrabões, 1933). Teve razão na escolha. Leo McCarey era um
cineasta de rara apetência para a comédia, um homem de sensibilidade e bom
gosto, delicado e fino no humor, inteligente nas alfinetadas que distribuía,
discreto e subtil nos gags, dirigindo com mestria os seus actores. Os
paralelismos que estabelece entre a sobriedade britânica, a sua hierarquia
estática, os valores tradicionais, a estrita divisão de classes, irão sofrer um
rude golpe ao confrontarem-se com a expansiva truculência ianque, com a espontaneidade
e a ingenuidade (por vezes o primarismo) dos comportamentos do Oeste dos EUA. A
solenidade dos clubes ingleses dá lugar à vulgaridade e luxúria dos saloons
norte-americanos. Desta justaposição de civilizações e culturas tira Leo
McCarey o partido decisivo para um filme de um humor transbordante,
deliciosamente crítico, mas de um humanismo generoso e optimista.
E o elenco é brilhante. Charles
Laughton, em Ruggles, é absolutamente brilhante, mas Charles Ruggles, em Egbert
Floud, não o é menos, e Mary Boland, Zasu Pitts ou Roland Young estão à altura.
Uma comédia admirável, que seria bom ser muito mais conhecida nos nossos dias.
O
EXTRAVAGANTE SENHOR RUGGLES
Título
original: Ruggles of Red Gap
Realização: Leo McCarey
(EUA, 1935); Argumento: Walter DeLeon, Harlan Thompson, Humphrey Pearson,
segundo romance de Harry Leon Wilson ("Ruggles of Red Gap");
Produção: Arthur Hornblow Jr.; Música: John Leipold, Heinz Roemheld;Fotografia
(p/b): Alfred Gilks; Montagem: Edward Dmytryk; Direcção artística: Hans Dreier,
Robert Odell; Guarda-roupa: Travis Banton; Assistentes de realização: A.F.
Erickson; Som: Philip Wisdom; Apresentação: Adolph Zukor; Companhia de
produção: Paramount Pictures; Intérpretes:
Charles Laughton (Ruggles), Mary Boland (Effie Floud), Charles Ruggles (Egbert
Floud), Zasu Pitts (Prunella Judson), Roland Young (George), Leila Hyams (Nell
Kenner), Maude Eburne ('Ma' Pettingill), Lucien Littlefield, Leota Lorraine,
James Burke, Dell Henderson, Clarence Wilson, etc. Duração: 91 minutos; Distribuição em Portugal: Feel Filmes;
Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 28 de Maio de
1936.
LEO McCAREY
(1898-1969)
Filmografia
/ como realizador (principais filmes): 1921: Society Secrets (curta-metragem,
filme de estreia); 1925: Isn't Life Terrible? (c-m);
1926: Mighty Like a Moose (c-m); 1927: Sugar Daddies (1927 short); 1928: Pass
the Gravy (c-m); Should Married Men Go Home? (c-m); Habeas Corpus (c-m); We Faw
Down (c-m); 1929: Liberty (c-m); Wrong Again (c-m); Big Business (c-m); 1931:
Indiscreet (Indiscreto); 1932: The Kid from Spain (Toureiro à Força); 1933:
Duck Soup (Os Grandes Aldrabões); 1934: Belle of the Nineties; Six of a Kind
(Segunda Lua-de-Mel); 1935: Ruggles of Red Gap (O Extravagante Senhor Ruggles);
1936: The Milky Way (Via Láctea); 1937:
Make Way for Tomorrow; 1937: The Awful Truth (Com a Verdade Me Enganas); 1939:
Love Affair (Ele e Ela); 1942: Once Upon a Honeymoon (Lua Sem Mel); 1944: Going
My Way (O Bom Pastor); 1945: The Bells of St. Mary's (Os Sinos de Santa Maria);
1948Good Sam (O Bom Samaritano; 1952: My Son John (Perseguem o Meu Filho);
1957: An Affair to Remember (O Grande Amor da Minha Vida); 1958: Rally
Sem comentários:
Enviar um comentário