segunda-feira, 11 de julho de 2016

SESSÃO 33 - 13 DE JULHO DE 2016



WOODY ALLEN E “O INIMIGO PÚBLICO”

Autor de mais de cinco dezenas de obras (que realiza à media de uma por ano), Woody Allen é, indiscutivelmente, um dos maiores cineastas vivos e um dos mais importantes retratistas da nossa sociedade. Não se trata de um autor que procure grandes orçamentos e temas grandiloquentes. A sua arte é quase a do miniaturista que gosta de analisar pequenas células familiares e os reduzidos orçamentos permitem-lhe a total liberdade de acção que de outra forma não conseguiria. O prestígio de que goza junto dos actores leva-o a poder escolher quem quer para ser por si dirigido (os elencos das suas obras são quase um dicionário de actores americanos contemporâneos, e não só!) e as equipas técnicas mantêm-se de filme para filme, com raras excepções, o que indicia também uma “família” técnica a rodear o cineasta. Na verdade vários dos mais reputados técnicos colaborarem com ele (na direcção de fotografia, por exemplo, Gordon Willis, Carlo Di Palma, Sven Nikvist, Zhao Fei sucedem-se ao longo de quase cinquenta anos, alguns com bastante insistência).
Nascido em Nova Iorque, a 1 de Dezembro de 1935 (signo Sagitário, a quem pertencem, entre outros, Jean Genet, William Blake, Edith Piaf, Heine Rilke, Toulouse Lautrec, Florbela Espanca...), de origem judaica, o seu nome de baptismo é Allen Stewart Konisberg. O pai, Martin Konisberg, trabalhou durante grande parte da sua vida no negócio de diamantes e foi empregado do Sammys Bougery Follies. Informações que não são, todavia, concordantes com a descrição do próprio Woody Allen, que, deste período da sua vida, disse, certamente em tom de “blague”: “Nasci numa família “burguesa”: o meu pai era motorista de táxi e a minha mãe vendia flores. Como não arranjaram vaga na escola para mim, colocaram-me num colégio para atrasados mentais”.


E continuou: “Aos 12 anos ainda fazia bolinhas nos cadernos. Aos 15, sonhava ser agente secreto: estudava impressões digitais, lia tudo sobre crimes e só esperava pelo momento de ser contratado pelo FBI. Mais tarde, ao saber que os agentes secretos tinham de engolir os microfilmes, e, como o meu médico me tinha proibido de comer gelatina, comecei a estudar artes mágicas. Cansei-me logo de tantos coelhos, lenços e caixas secretas e, como não tenho boa memória, acabaria certamente por enforcar os coelhos nos lenços. Assim, decidi escrever... anedotas. De dia trabalhava em relações públicas, e à noite escrevia piadas. Escrevia coisas de uma idiotice total”.
Começa realmente a escrever, aos 17 anos, “gags” para alguns dos mais famosos cómicos e “entertainers” da televisão norte-americana desses anos, como Síd Caeser, Ed Sullivan, Garry Moore ou Sid Corney. Torna-se um nome muito solicitado para os “shows” televisivos, mas a TV deixa-lhe más recordações e cedo se afasta: “Naquele tempo, a televisão precisava de gente e qualquer pessoa, mesmo um cretino, arranjava um “lugarzinho”. A televisão melhorou muito o meu senso crítico. Tanto que hoje já não a vejo”.
No teatro, é autor de várias peças, duas das quais já adaptadas ao cinema (“Play It Again, Sam”, dirigida por Herbert Ross, com o próprio Woody Allen no protagonista, “O Grande Conquistador” em português; e ainda “Don’t Drink The Water” - “Não Metas Água” -, com realização de Howard Morris, medíocre aproveitamento de uma situação com o seu quê de estafada - uma família de New Jersey, composta por “americanos típicos”, é desviada para a Bulgária, onde é tomada por espiões).
Começa a aparecer igualmente com bastante regularidade em jornais e revistas: “Fundei uma espécie de agência com um só funcionário - eu próprio. Escrevia e despejava artigos da minha autoria como quem vende salsichas, “Esquire”, “Life”, “New Yorker”, “Playboy”, teatro, televisão, “boites”, tudo foi invadido por Woody Allen. Na América, se alguém quisesse ignorar-me era impossível: eu estava lá e, como o custo de vida, subia vertiginosamente...” Algumas recolhas de textos seus conhecem um sucesso invulgar em todo o mundo onde são editados, inclusive em Portugal.


Por 25 dólares por semana, ao que consta, Allen passava o tempo que lhe restava dos estudos na Universidade de Nova Iorque escrevendo piadas que um dia o produtor Charles Feldman encontrou “cinematográficas”. Assim surgiu a sua estreia no cinema, como um dos autores de “What’s New, Pussicat?” (Que há de novo, Gatinha?, filme de Clive Donner, comédia absurda com uma base de “vaudeville’, onde Woody Allen surgia igualmente como actor, em meia dúzia de cenas que eram ainda o que de melhor o filme oferecia.)
Sobre “Pussicat” disse Woody AlIen: “Aprendi alguma coisa de como fazer filmes. Quando se está a rodar um grande filme de 4 000 000 de dólares, temos sempre à nossa volta uma quantidade de gente que diz estar a “proteger os investimentos”. Eles queriam um filme rapariga-rapariga-sexo-sexo para fazer uma fortuna. Eu tinha mais qualquer coisa na cabeça. Conseguiram um filme rapariga-rapariga-sexo-sexo que fez uma fortuna.”
Woody Allen surge depois numa aventura burlesca e louca em 007 - “Casino Royal”. Não aparece entre os autores do argumento. Mas, para lá da sua participação como actor, descobrem-se muitas ideias e diálogos obviamente da sua autoria. Antes de iniciar a carreira como realizador (e autor integral de filmes), Allen ainda adaptou um filme de espionagem japonês a comédia americana. De 1969 é o primeiro filme de Woody Allen, aquele que o revelaria nos EUA e na Europa - “Take lhe Money and Run” (O Inimigo Público).


O INIMIGO PÚBLICO (1969)

Na linha do melhor burlesco americano, Woody Allen conta com antepassados ilustres como Buster Keaton (de quem herda uma certa qualidade nostálgica de olhar), Chaplin (que lhe trespassa o ar abandonado de pobre diabo), Bucha e Estica ou os irmãos Marx (e o seu universo caótico e profundamente absurdo). Mas Woody Allen não se fica pelos antepassados remotos e vai beber a Jerry Lewis (sobretudo no início da sua carreira) as influências inequívocas (nomeadamente na convivência desastrada com os objectos, as máquinas, etc.). Acontece, porém, que depois de ter visto muito cinema, Woody Allen resolveu iniciar um caminho pessoal. Assim, as influências são manifestas, mas nunca o plágio.
Woody Allen deixou-se impregnar pelo espírito do burlesco americano, pelo seu mecanismo de riso, mas reinventa os “gags”, repensa a sua utilização redescobre o cinema. Ou seja: sabe o que quer e como quer. Não hesita. “Take lhe Money and Run”, seu primeiro filme de fundo, escrito, realizado e interpretado por si, é um atestado de maturidade e a afirmação de um talento de recursos inesgotáveis.
Intencional e cáustico na sua sátira, Woody Allen não deixa qualquer pormenor ao acaso. Todos os seus “achados” têm uma justificação. A escrita é moderna, sincopada, integrando a entrevista de TV (como sejam os casos das diversas personalidades que são chamadas a depor sobre Virgil Starkwell, incluindo os seus pais que, envergonhados com a conduta do filho, se disfarçam com elementos de Groucho Marx) ou o comentário “off” com a narrativa linear das desventuras de um “inimigo público”. Tudo isto se consegue sem uma falha de ritmo, sem uma concessão, sem perda de unidade, muito embora grande parte dos “gags” seleccionados tivessem sido já utilizados em anteriores “shows”. Allen, de uma inteligência revigorante, obriga a acção a galopar. Difícil se torna comentar os “gags” que se sucedem. Anotemos, porém, alguns como exemplares: Virgil desde criança que é apanhado sempre que tenta qualquer expediente. Como castigo, deitam-lhe os óculos fora e pisam-nos. Inclusive o juiz do tribunal. Tempos depois, quando uma evasão se logra, Virgil é o primeiro a aceitar o falhanço e ele mesmo tira os óculos e os pisa, em autopunição. Toda a sequência do assalto preparado com máquina de filmar e quatro cúmplices de má estirpe, é perfeitamente antológica - o realizador é Fritz e deverá ter algo a ver com Lang -, bem assim como a fuga dos seis condenados, ligados por uma corrente. Desconcertante e profundamente absurdo, “O Inimigo Público” ficará como uma das mais importantes estreias em comédia de finais da década de 60. Através dela renova-se um “género” por essa altura um tanto ou quanto depauperado e que Woody Allen reconduz a primeiríssimo plano, servindo-se para tanto de uma paródia inspirada no “filme negro” e na biografia de “gangsters” de uma genuína tradição americana.

O INIMIGO PÚBLICO 
Título original: Take the Money and Run

Realização: Woody Allen (EUA, 1969); Argumento: Woody Allen, Mickey Rose; Música: Marvin Hamlisch; Fotografia (cor): Lester Shorr; Montagem: Paul Jordan, Ron Kalish; Casting: Marvin Paige; Direcção artística: Fred Harpman; Decoração: Marvin March; Maquilhagem: Stanley R. Dufford; Direcção de produção: Fred T. Gallo, Jack Grossberg; Assistentes de realização: Walter Hill, Louis A. Stroller; Departamento de Arte: Ted Moehnke, Ken Phelps, Chardin W. Smith; Som:  Bud Alper, Frank Kulaga, Sanford Rackow, John Strauss, Dick Vorisek; Efeitos Especiais: A.D. Flowers; Produção: Charles H. Joffe, Sidney Glazier, Jack Grossberg, Jack Rollins, Edgar J. Scherick; Intérpretes: Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin (Louise), Marcel Hillaire (Fritz), Jacquelyn Hyde (Miss Blair), Lonny Chapman (Jake), Jan Merlin (Al), James Anderson (Chain Gang Warden), Jackson Beck (Narrador), Howard Storm (Fred), Mark Gordon (Vince), Micil Murphy (Frank), Minnow Moskowitz (Joe Agneta), Nate Jacobson (Juiz), Grace Bauer (camponesa), Henry Leff (pai de Starkwell), Ethel Sokolow (mãe de Starkwell), Louise Lasser (Kay Lewis), Dan Frazer (psicanalista), Mike O'Dowd (Michael Sullivan), Roy Engel (guarda de prisão), etc. Duração: 85 minutos; Distribuição em Portugal: nesta altura inexistente; Edição DVD: Creative Films, Espanha; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 14 de Julho de 1971.

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