WOODY ALLEN E “O INIMIGO PÚBLICO”
Autor de
mais de cinco dezenas de obras (que realiza à media de uma por ano), Woody
Allen é, indiscutivelmente, um dos maiores cineastas vivos e um dos mais
importantes retratistas da nossa sociedade. Não se trata de um autor que
procure grandes orçamentos e temas grandiloquentes. A sua arte é quase a do
miniaturista que gosta de analisar pequenas células familiares e os reduzidos
orçamentos permitem-lhe a total liberdade de acção que de outra forma não
conseguiria. O prestígio de que goza junto dos actores leva-o a poder escolher
quem quer para ser por si dirigido (os elencos das suas obras são quase um
dicionário de actores americanos contemporâneos, e não só!) e as equipas
técnicas mantêm-se de filme para filme, com raras excepções, o que indicia
também uma “família” técnica a rodear o cineasta. Na verdade vários dos mais
reputados técnicos colaborarem com ele (na direcção de fotografia, por exemplo,
Gordon Willis, Carlo Di Palma, Sven Nikvist, Zhao Fei sucedem-se ao longo de
quase cinquenta anos, alguns com bastante insistência).
Nascido
em Nova Iorque, a 1 de Dezembro de 1935 (signo Sagitário, a quem pertencem,
entre outros, Jean Genet, William Blake, Edith Piaf, Heine Rilke, Toulouse
Lautrec, Florbela Espanca...), de origem judaica, o seu nome de baptismo é
Allen Stewart Konisberg. O pai, Martin Konisberg, trabalhou durante grande
parte da sua vida no negócio de diamantes e foi empregado do Sammys Bougery
Follies. Informações que não são, todavia, concordantes com a descrição do
próprio Woody Allen, que, deste período da sua vida, disse, certamente em tom
de “blague”: “Nasci numa família “burguesa”: o meu pai era motorista de táxi e
a minha mãe vendia flores. Como não arranjaram vaga na escola para mim,
colocaram-me num colégio para atrasados mentais”.
E
continuou: “Aos 12 anos ainda fazia bolinhas nos cadernos. Aos 15, sonhava ser
agente secreto: estudava impressões digitais, lia tudo sobre crimes e só
esperava pelo momento de ser contratado pelo FBI. Mais tarde, ao saber que os
agentes secretos tinham de engolir os microfilmes, e, como o meu médico me
tinha proibido de comer gelatina, comecei a estudar artes mágicas. Cansei-me
logo de tantos coelhos, lenços e caixas secretas e, como não tenho boa memória,
acabaria certamente por enforcar os coelhos nos lenços. Assim, decidi
escrever... anedotas. De dia trabalhava em relações públicas, e à noite
escrevia piadas. Escrevia coisas de uma idiotice total”.
Começa
realmente a escrever, aos 17 anos, “gags” para alguns dos mais famosos cómicos
e “entertainers” da televisão norte-americana desses anos, como Síd Caeser, Ed
Sullivan, Garry Moore ou Sid Corney. Torna-se um nome muito solicitado para os
“shows” televisivos, mas a TV deixa-lhe más recordações e cedo se afasta:
“Naquele tempo, a televisão precisava de gente e qualquer pessoa, mesmo um
cretino, arranjava um “lugarzinho”. A televisão melhorou muito o meu senso
crítico. Tanto que hoje já não a vejo”.
No
teatro, é autor de várias peças, duas das quais já adaptadas ao cinema (“Play
It Again, Sam”, dirigida por Herbert Ross, com o próprio Woody Allen no
protagonista, “O Grande Conquistador” em português; e ainda “Don’t Drink The
Water” - “Não Metas Água” -, com realização de Howard Morris, medíocre
aproveitamento de uma situação com o seu quê de estafada - uma família de New
Jersey, composta por “americanos típicos”, é desviada para a Bulgária, onde é
tomada por espiões).
Começa a
aparecer igualmente com bastante regularidade em jornais e revistas: “Fundei
uma espécie de agência com um só funcionário - eu próprio. Escrevia e despejava
artigos da minha autoria como quem vende salsichas, “Esquire”, “Life”, “New
Yorker”, “Playboy”, teatro, televisão, “boites”, tudo foi invadido por Woody
Allen. Na América, se alguém quisesse ignorar-me era impossível: eu estava lá
e, como o custo de vida, subia vertiginosamente...” Algumas recolhas de textos
seus conhecem um sucesso invulgar em todo o mundo onde são editados, inclusive
em Portugal.
Por 25
dólares por semana, ao que consta, Allen passava o tempo que lhe restava dos
estudos na Universidade de Nova Iorque escrevendo piadas que um dia o produtor
Charles Feldman encontrou “cinematográficas”. Assim surgiu a sua estreia no
cinema, como um dos autores de “What’s New, Pussicat?” (Que há de novo,
Gatinha?, filme de Clive Donner, comédia absurda com uma base de “vaudeville’,
onde Woody Allen surgia igualmente como actor, em meia dúzia de cenas que eram
ainda o que de melhor o filme oferecia.)
Sobre
“Pussicat” disse Woody AlIen: “Aprendi alguma coisa de como fazer filmes.
Quando se está a rodar um grande filme de 4 000 000 de dólares, temos sempre à
nossa volta uma quantidade de gente que diz estar a “proteger os
investimentos”. Eles queriam um filme rapariga-rapariga-sexo-sexo para fazer
uma fortuna. Eu tinha mais qualquer coisa na cabeça. Conseguiram um filme
rapariga-rapariga-sexo-sexo que fez uma fortuna.”
Woody Allen surge depois numa aventura burlesca e louca em 007 - “Casino
Royal”. Não aparece entre os autores do argumento. Mas, para lá da sua
participação como actor, descobrem-se muitas ideias e diálogos obviamente da
sua autoria. Antes de iniciar a carreira como realizador (e autor integral de
filmes), Allen ainda adaptou um filme de espionagem japonês a comédia
americana. De 1969 é o primeiro filme de Woody Allen, aquele que o revelaria
nos EUA e na Europa - “Take lhe Money and Run” (O Inimigo Público).
O INIMIGO
PÚBLICO (1969)
Na
linha do melhor burlesco americano, Woody Allen conta com antepassados ilustres
como Buster Keaton (de quem herda uma certa qualidade nostálgica de olhar),
Chaplin (que lhe trespassa o ar abandonado de pobre diabo), Bucha e Estica ou
os irmãos Marx (e o seu universo caótico e profundamente absurdo). Mas Woody
Allen não se fica pelos antepassados remotos e vai beber a Jerry Lewis
(sobretudo no início da sua carreira) as influências inequívocas (nomeadamente
na convivência desastrada com os objectos, as máquinas, etc.). Acontece, porém,
que depois de ter visto muito cinema, Woody Allen resolveu iniciar um caminho
pessoal. Assim, as influências são manifestas, mas nunca o plágio.
Woody
Allen deixou-se impregnar pelo espírito do burlesco americano, pelo seu
mecanismo de riso, mas reinventa os “gags”, repensa a sua utilização redescobre
o cinema. Ou seja: sabe o que quer e como quer. Não hesita. “Take lhe Money and
Run”, seu primeiro filme de fundo, escrito, realizado e interpretado por si, é um
atestado de maturidade e a afirmação de um talento de recursos inesgotáveis.
Intencional
e cáustico na sua sátira, Woody Allen não deixa qualquer pormenor ao acaso.
Todos os seus “achados” têm uma justificação. A escrita é moderna, sincopada,
integrando a entrevista de TV (como sejam os casos das diversas personalidades
que são chamadas a depor sobre Virgil Starkwell, incluindo os seus pais que,
envergonhados com a conduta do filho, se disfarçam com elementos de Groucho
Marx) ou o comentário “off” com a narrativa linear das desventuras de um
“inimigo público”. Tudo isto se consegue sem uma falha de ritmo, sem uma
concessão, sem perda de unidade, muito embora grande parte dos “gags”
seleccionados tivessem sido já utilizados em anteriores “shows”. Allen, de uma
inteligência revigorante, obriga a acção a galopar. Difícil se torna comentar
os “gags” que se sucedem. Anotemos, porém, alguns como exemplares: Virgil desde
criança que é apanhado sempre que tenta qualquer expediente. Como castigo,
deitam-lhe os óculos fora e pisam-nos. Inclusive o juiz do tribunal. Tempos
depois, quando uma evasão se logra, Virgil é o primeiro a aceitar o falhanço e
ele mesmo tira os óculos e os pisa, em autopunição. Toda a sequência do assalto
preparado com máquina de filmar e quatro cúmplices de má estirpe, é
perfeitamente antológica - o realizador é Fritz e deverá ter algo a ver com
Lang -, bem assim como a fuga dos seis condenados, ligados por uma corrente.
Desconcertante e profundamente absurdo, “O Inimigo Público” ficará como uma das
mais importantes estreias em comédia de finais da década de 60. Através dela
renova-se um “género” por essa altura um tanto ou quanto depauperado e que
Woody Allen reconduz a primeiríssimo plano, servindo-se para tanto de uma
paródia inspirada no “filme negro” e na biografia de “gangsters” de uma genuína
tradição americana.
O INIMIGO PÚBLICO
Título original: Take the Money and Run
Realização: Woody Allen (EUA, 1969); Argumento:
Woody Allen, Mickey Rose; Música: Marvin Hamlisch; Fotografia (cor): Lester
Shorr; Montagem: Paul Jordan, Ron Kalish; Casting: Marvin Paige; Direcção
artística: Fred Harpman; Decoração: Marvin March; Maquilhagem: Stanley R.
Dufford; Direcção de produção: Fred T. Gallo, Jack Grossberg; Assistentes de
realização: Walter Hill, Louis A. Stroller; Departamento de Arte: Ted Moehnke,
Ken Phelps, Chardin W. Smith; Som: Bud
Alper, Frank Kulaga, Sanford Rackow, John Strauss, Dick Vorisek; Efeitos
Especiais: A.D. Flowers; Produção: Charles H. Joffe, Sidney Glazier, Jack
Grossberg, Jack Rollins, Edgar J. Scherick; Intérpretes: Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin
(Louise), Marcel Hillaire (Fritz), Jacquelyn Hyde (Miss Blair), Lonny Chapman
(Jake), Jan Merlin (Al), James Anderson (Chain Gang Warden), Jackson Beck
(Narrador), Howard Storm (Fred), Mark Gordon (Vince), Micil Murphy (Frank),
Minnow Moskowitz (Joe Agneta), Nate Jacobson (Juiz), Grace Bauer (camponesa),
Henry Leff (pai de Starkwell), Ethel Sokolow (mãe de Starkwell), Louise Lasser
(Kay Lewis), Dan Frazer (psicanalista), Mike O'Dowd (Michael Sullivan), Roy
Engel (guarda de prisão), etc. Duração:
85 minutos; Distribuição em Portugal: nesta altura inexistente; Edição DVD:
Creative Films, Espanha; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal:
14 de Julho de 1971.
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