domingo, 23 de outubro de 2016

SESSÃO 52 -25 DE OUTUBRO DE 2016



O HOMEM DAS CALÇAS PARDAS (1950)

“Ruggles of Red Gap”, como já se falou aquando da nossa conversa sobre a versão de 1935, dirigida por Leo McCarey com o fabuloso Charles Laughton, parte de um romance de Harry Leon Wilson, que conheceu grande sucesso por ocasião do seu lançamento, em 1915. No mesmo ano, subiu a cena numa adaptação teatral, em musical, com escrita da responsabilidade de Harrison Rhoades, poemas de Harold Atteridge e música de Sigmund Romberg. Estreada no Fulton Theater, precisamente no dia 25 de Dezembro, data festiva que se conciliava bem com o tom geral da obra. Conheceu 33 representações. Digamos que cumpriu a época de Natal e Ano Novo.
Também em cinema surgiram versões anteriores a essa, assinada por Leo McCarey, e uma posterior, ainda de boa qualidade, interpretada pelo popular Bob Hope, rodada em 1950, com o título “O Homem das Calças Pardas” (Fancy Pants), com direcção de George Marshall, contando igualmente no elenco com Lucille Ball e Bruce Cabot.
A versão de Bob Hope é muito diferente da de Charles Laughton. São actores de escolas diferentes, com características muito diversas. Bob Hope era um actor que se especializara num tipo de humor que tinha muito a ver com o entertainer. Muita da sua actividade passou-se entre shows de teatro, hotéis, rádio, televisão, vaudeville e obviamente no cinema. Foi o apresentador de maior longevidade a apresentar a cerimónia dos Oscars (creio que durante dezoito edições, o que é obra!).   
Leslie Townes Hope nasceu em Eltham, Reino Unido, a 29 de Maio de 1903, e viria a falecer, com 100 anos de idade, em Toluca Lake, Califórnia, a 27 de Julho de 2003. Filho de um canteiro de Weston-super-Mare e de uma cantora de opereta, Bob Hope tinha seis irmãos, viveu em Weston-super-Mare, em Whitehall e em St. George em Bristol, antes de a família se mudar para Cleveland, no Ohio, EUA, em 1907. Hope assumiu a cidadania norte-americana quando completou 17 anos. Foi boxeur, imagine-se!, com o nome de Packy Easte e parece que não teve grande sucesso. Participou em concursos a imitar Charles Chaplin, sendo notado por um comediante da época, Fatty Arbuckle, que o empregou a partir de 1925. Forma depois um grupo a que chamou "The Dancemedians", juntamente com as irmãs Hilton. Trabalha alguns anos no vaudeville e regressa a Nova Iorque e à Broadway, em musicais onde a crítica destaca o seu trabalho. Em meados da década de 30, vamos encontrá-lo em Hollywood, ingressa na Warner Brothers, primeiro em pequenos papéis, depois ganhando cada vez maior destaque.


Em 1938, em "The Big Broadcast of 1938", aparece a cantar "Thanks for the Memory", que se transforma num hit e que se torna um símbolo para Bob Hope. O actor e cantor assemelha-se progressivamente a uma lenda viva da América, incorporando alguns dos seus valores. Filmes como “Road to Singapore”, “Road to Zanzibar”, “Nothing But the Truth”, “My Favorite Blonde”, Road to Morocco”, “Star spangled rhythm”, “The Princess and the Pirate”, “Road to Utopia”, “My Favorite Brunette”, “Variety Girl”, “Road to Rio”, “The Paleface” ou “The Great Lover” ocuparam os anos 40, transformando-o num herói nacional que frequentou a Casa Branca durante a presidência de vários ocupantes (especialmente republicanos).
A sua popularidade prosseguiu até aos anos 70, com outras comédias de sucesso: “Fancy Pants”, “My Favorite Spy”,  “The Greatest Show on Earth”, “Son of Paleface”, “Road to Bali”, “Scared Stiff”, “Casanova's Big Night”, “Beau James”, “The Five Pennies”, “Bachelor in Paradise” ou “The Road to Hong Kong”. A série “Road to…” foi das mais célebres do cinema norte-americano por essas décadas. Trabalhou muito com Bing Crosby, e actrizes como Dorothy Lamour, Lucille Ball, Jane Russell, Joan Collins ou Katharine Hepburn. Depois, foi a televisão que o ocupou durante décadas. “Porque não abandonou o trabalhou e se dedicou à pesca?”, perguntaram-lhe um dia, quando ele já merecia uma reforma dourada. Ele respondeu “Porque os peixes não costumam rir”.


Nunca ganhou um Oscar relativo a um filme (o que justificou várias piadas suas durante as cerimónias de entrega das estatuetas), mas a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood honrou-o com diversos prémios, desde 1941 até 1966. A sua contribuição para o esforço da guerra, durante o período de 1941-1954, levou-o a vários espectáculos de apoio aos militares na frente do conflito.
“Fancy Pants” é um dos títulos representativos do seu período áureo no cinema. Na versão da peça e no filme de Norma McLeod, o mordomo era um lídimo mordomo inglês que era enviado a contragosto para o Oeste norte-americano. Na versão de Bob Hope o mordomo é um actor que interpreta o papel de mordomo numa peça e que é convencido a ir para o Oeste desempenhar o mesmo papel mas não no teatro, na vida real. Obviamente que os equívocos e as trapalhadas não se fazem esperar, mas, como quase sempre nestes casos, o aldrabão do comediante é um aprendiz ao lado de outros vigaristas que ele acabará por ajudar a destapar a careca. O filme foi concebido à medida do talento e das qualidades de Bob Hope, desenrola uma sucessão curiosa de sequências bem imaginadas que desencadeiam vagas de um humor inventivo e bem coordenado. Há algumas cenas de perseguições, nomeadamente numa caçada, que resistem bem à passagem do tempo e mostram como se mantém actual este tipo de comédia de situações, com o seu quê de crítica social.


O HOMEM DAS CALÇAS PARDAS
Título original: Fancy Pants

Realização: George Marshall (EUA, 1950); Argumento: Edmund L. Hartmann, Robert O'Brien, com contributos de Richard L. Breen, Monte Brice, Frank Butler, Barney Dean, Irving Elinson, Richard English, Richard Flournoy, Segundo história de Harry Leon; Produção: Robert L. Welch; Música: Van Cleave; Fotografia (cor): Charles Lang; Montagem: Archie Marshek; Direcção artística: Hans Dreier, A. Earl Hedrick; Decoração: Sam Comer, Emile Kuri; Guarda-roupa: Mary Kay Dodson, Gile Steele;  Maquilhagem: Wally Westmore; Direcção de Produção: C. Kenneth Deland; Assistentes de realização: Oscar Rudolph, Herbert Coleman, Michael D. Moore, James A. Rosenberger; Departamento de arte: Robert Goodstein, Joe Portillo; Som: Don Johnson, Gene Merritt; Efeitos visuais: Farciot Edouart, Gordon Jennings; Companhias de produção: Production Companies, Paramount Pictures; Intérpretes: Bob Hope (Humphrey), Lucille Ball (Agatha Floud), Bruce Cabot (Cart Belknap), Jack Kirkwood (Mike Floud), Lea Penman (Effie Floud), Hugh French (George Van Basingwell), Eric Blore (Sir Wimbley), Joseph Vitale (Wampum), John Alexander (Teddy Roosevelt), Norma Varden (Lady Maude), Virginia Keiley, Colin Keith-Johnston, Joe Wong, etc. Duração: 92 minutos; Distribuição em Portugal: Feel Films Espanha; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Junho de 1951.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

SESSÃO 51 -18 DE OUTUBRO DE 2016


O BOLERO DE RAQUEL (1957)

Cantinflas é o mais popular actor cómico de todo o cinema latino-americano. Ignorado nalgumas partes do mundo, onde os seus filmes não penetraram (nomeadamente em certas zonas da Europa), é, todavia, célebre em países como Portugal e Espanha, cujos públicos se identificam muito com a personagem por si criada e o estilo de humor por si praticado.
Nascido na Cidade do México, a 12 de Agosto de 1913, com o nome de Mário Fortino Alfonso Moreno Reyes, Cantinflas era oriundo de uma família muito pobre. Tinha doze irmãos e o seu primeiro emprego foi como engraxador, seguindo-se aprendiz de toureiro, motorista de táxi e pugilista. A sua vida mudou quando, por volta dos vinte anos, quando trabalhava como empregado num teatro popular, teve a oportunidade de substituir o apresentador do espetáculo, que adoecera. Ao inventar frases, trocar palavras, improvisar a seu belo prazer, Cantinflas, conquistou o público. Passa pelo circo, faz tournées pelo México, exercita-se em espectáculos de cabaret e de teatro e depois, a partir de 1936, aventura-se no cinema, onde ergue uma figura inesquecível, que vai buscar influência a Charlot, mas dele se desprendendo rapidamente, optando por características próprias.
Em 1930, já era o cómico mais famoso do país. Em 1934, conhecera a actriz Valentina Subarev, com quem casou e teve o único filho, Mário Arturo Ivanova. Em 1936, com uma ampla bagagem acumulada no circo, estreou-se no filme “Não Te Enganes, Coração”, ao qual se seguiram “Na Minha Terra É Assim”, “Águila, o Sol” (1937) e “O Signo da Morte” (1939). A consagração como ídolo popular opera-se em 1940, com o filme “Aí Está o Detalhe”, em cuja última cena encerra um delirante discurso que ultrapassa as convenções sociais. O sucesso deste filme possibilitou-lhe fundar a companhia Posa Filmes que, com quase 50 filmes, bateu recordes de bilheteira nas três décadas que se seguiram.


O seu humor, essencialmente verbal, vive basicamente de trocadilhos e de uma divertida charge à linguagem "difícil" empregue pelos novos-ricos que se querem fazer passar por muito "cultos". São famosas algumas réplicas suas, como "Pode-se compenetrar?", "sem erros de topografia", "quero o banho frappé", "não abuse da minha candorosidade" e tantas outras, como aquela que o liga à sua muito invulgar indumentária, "mi gabardine". O seu discurso, desconexo, mas absolutamente torrencial, subvertendo a lógica e a sintaxe, deve algo a Groucho Marx, mas é igualmente desenvolvido por vias muito próprias, que roçam um outro discurso latino, o do napolitano Tótó.
Personagem de "descamisado" em busca de uma dignidade perdida, mas nunca negada, Cantinflas impôs um "boneco" que se recorta com nitidez no quadro dos grandes actores cómicos do cinema mundial, apesar de quase nunca ter sido servido por realizadores interessantes. Na verdade, a sua filmografia mexicana (muito mais interessante até inícios dos anos 60 do que posteriormente, onde se nota um certo anquilosamento da figura e uma evidente falta de frescura) encontra-se quase toda assinada por um anódino Miguel M. Delgado, que, na sua ausência de ambições, acabou por ajudar mais o actor do que os grandes estúdios norte-americanos que o tentaram aproveitar sem entender a personagem, em filmes como "A Volta ao Mundo em 80 Dias", de Michael Anderson (1957) ou "Pepe", de George Sidney (1960). Charlie Chaplin admirava-o enormemente e chegou a dizer que “Cantinflas foi o maior actor cómico de sempre”.
Conheceu sempre grande sucesso em Portugal, onde os seus filmes se mantinham meses em estreia. Visitou o nosso país para lançar um dos seus filmes, e conheceu uma recepção eufórica. Morreu de cancro de pulmão, na cidade do México, em 20 de Abril de 1993, com 81 anos. Dezenas de milhares de pessoas juntaram-se num dia de chuva para o seu funeral, que durou três dias. Era enorme a popularidade de Cantinflas, sobretudo nas classes populares.
Mais recentemente foi editado entre nós, em cassetes vídeo, depois em DVD, numa colecção, de venda directa, onde, até ao momento, se encontram disponíveis vários títulos, todos rodados no México, e todos dirigidos pelo seu realizador de serviço, Miguel M. Delgado: "Os Três Mosqueteiros (Los Tres Mosqueteros, 1942); "Cantinflas Bombeiro Atómico (El Bombero Atómico, 1950);"O Mata Sete" (El Sietemachos, 1950);"Cantinflas à la Minuta (El Señor Fotógrafo, 1952);"Cavalheiro Vagabundo" (Caballero a la Medida, 1953);"Vôo de Asas Cortadas" (A Volar Jovem, 1954); "O Bolero de Raquel" (El Bolero de Raquel, 1956); "Cantinflas, Faz Tudo" (El Extra, 1962); "Entrega Imediata - O Espia XU 777" (Entrega Enmediata, 1963); "Cantinflas, O Bom Pastor" (El Padrecito, 1964); "O Senhor Doutor" (El Señor Doctor, 1965); "As Minhas Pistolas" (Por Mis... Pistolas!, 1967); "D.Quixote sem Mancha" (Un Quijote sin Mancha, 1968); "O Catedrático" (El Profe, 1971); "Às Ordens de Vosselência" (Conserje para Todo, 1973); "O Ministro e Eu" (El Ministro Y Yo, 1975); "O Varredor" (El Barrendero, 1982).
“El bolero de Raquel”, datado de 1957, é um bom exemplo do seu humor e das suas preocupações sociais. Rodado em Acapulco, serve-se de algumas das experiências de vida do próprio Mario Moreno. Ele é engraxador e um dia, por morte de um amigo, descobre-se como encarregado de educação de um miúdo e como suporte de uma jovem mãe viúva. Para melhorar a sua qualidade de vida, vai frequentar uma escola onde uma bela professora lhe dá aulas e volta à cabeça. Procura outros empregos e vai passar por um night club onde acabará por dançar o “Bolero” que dá nome ao filme. Infelizmente, o seu tipo de dança não é o mais apetecível para os proprietários, que o despedem. A passagem pelos locais de veraneio de Acapulco também não é muito bem recompensada, mas finalmente a sorte parece sorrir a este pobre-diabo de coração de ouro.
“El bolero de Raquel” satiriza, como sempre nos filmes deste actor, a vida das classes altas, dos ricos e dos poderosos, pondo em destaque a dificuldade de existência de pobres e humildes. Cantinflas vinha de rodar o seu filme de estreia em Hollywood, “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, e este seu regresso ao México foi saudado com um primeiro lugar no Box Office do seu país natal. Mas causou alguma decepção ao actor, pois os resultados não foram, apesar disso, os esperados.



O BOLERO DE RAQUEL
Título original: El bolero de Raquel

Realização: Miguel M. Delgado (México,1957); Argumento: Daniel Jiménez, Jaime Salvador, Miguel M. Delgado; Música: Raúl Lavista; Fotografia (cor): Gabriel Figueroa; Montagem: Jorge Busto; Design de produção: Gunther Gerszo; Maquilhagem: Armando Meyer; Direcção de Produção: Fidel Pizarro; Assistentes de realização: Mario Llorca; Som: José B. Carles, James L. Fields, Galdino R. Samperio; Companhias de produção: Posa Films; Intérpretes: Cantinflas (El Bolero), Manola Saavedra (Raquel), Flor Silvestre (Leonor), Paquito Fernández (Chavita), Daniel 'Chino' Herrera (Edelmiro), Mario Sevilla, Alberto Catalá, Roberto Meyer, Elaine Bruce, Leonor Gómez, Erika Carlsson, Roberto Corell, Pedro Elviro, Pablo Ferrel, Lidia Franco, Elodia Hernández, John Kelly, Carlos León, Dina de León, Salvador Lozano, Manuel Trejo Morales, Guillermo Álvarez Bianchi, etc. Duração: 101 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Pictures / Sony; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 31 de Outubro de 1957.

domingo, 9 de outubro de 2016

SESSÃO 50 -11 DE OUTUBRO DE 2016


TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA (1973)

“Toda a Nudez Será Castigada” parte de uma excelente peça teatral de Nelson Rodrigues, inúmeras vezes encenada no Brasil e no estrangeiro, inclusive em Portugal. Quem a adapta ao cinema foi Arnaldo Jabor, um dos mais importantes nomes do chamado novo cinema brasileiro, companheiro de geração e de movimento de Glauder Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros. Foi em meados dos anos 60 do século XX que este movimento emergiu com características muito próprias, de modernidade estilística, de crítica social, de engajamento politico, de radicalismo de propostas, algumas das quais profundamente enraizadas na cultura brasileira e no tropicalismo (donde a utilização deste termo para caracterizar algumas dessas obras iniciais desta corrente).
Arnaldo Jabor (nascido a 12 de Dezembro de 1940, no Rio de Janeiro) surgiu na longa-metragem, em 1967, com um documentário, “A Opinião Pública”, a que se seguiram “Pindorama” (1970), este “Toda a Nudez Será Castigada” (1973), “O Casamento” (1976), “Tudo Bem” (1978), “Eu te Amo” (1981), “Eu sei que Vou te Amar” (1986), e “A Suprema Felicidade” (2010), seu último trabalho no cinema até ao presente. Jabor dedica-se essencialmente à escrita, depois disso.
“Toda Nudez Será Castigada” é uma crónica familiar de maus costumes, mas onde estes maus costumes não são necessariamente os maus costumes que a sociedade normalizada costuma causticar. A crítica dirige-se fundamentalmente ao preconceito, ao puritanismo, à hipocrisia de certos princípios e valores de uma sociedade obviamente pervertida e enclausurada em dogmas e mais valias morais sem qualquer justificação.

Personagem da classe média brasileira, vivendo confortavelmente numa velha casa do Rio de Janeiro, Herculano (Paulo Porto) enviava e sente-se intimamente despedaçado e exteriormente amordaçado por uma família que não dá tréguas ao luto. As três tias e o filho impõem uma solidão total, uma clausura violenta, um silêncio austero, uma vida social inexistente. Com a morte da mulher, aquela família deixa de existir. Se as velhas tias se pautam por conceitos morais e religiosos obsoletos, será ainda um pouco compreensivo, pela tradição onde vivem. Para o filho do casal, esse luto que impõe regras desmedidas, só se compreende por um dramático desvio psicológico e uma morbidez patológica. Obviamente que as explicações não são apresentadas no filme como estritamente psicológicas, mas sim como consequência de uma educação e uma sociabilidade viciadas
Entretanto, um irmão de Herculano, Patrício (Paulo César Pereio), um malandro marginal desempregado que vive às custas de Herculano, resolve apresentar ao irmão uma bela e fogosa prostituta, Geni (Darlene Glória), que o faz regressar à vida e o enfeitiça com as suas ardentes sessões de amor e sexo. Herculano só sabe viver na dependência de uma mulher. Primeiro a legitima esposa que ele venera como “santa”, depois Geni, a prostituta que exige casamento para se continuar a entregar aos seus devaneios sexuais. Ambas o dominam e ele gosta de ser dominado. Como o seu filho Serginho (Paulo Sacks) gostará de ser dominado pelo ladrão boliviano (Orazir Pereira). Mas não antecipemos em demasia os acontecimentos desta delirante comédia de cunho social, onde perpassa uma certa ideia de libertação sexual.
A adaptação da peça ao cinema colocou alguns problemas geralmente bem resolvidos por Arnaldo Jabor que, como realizador, se mostra um inspirado autor de humor verrinoso, mas sempre comedido nos apontamentos, sem excessos escusados. O ambiente, social e urbano, é muito bem esboçado, os cenários são magníficos e ajudam de forma perfeita ao enquadramento das personagens, a fotografia explora muito bem este aspecto. Finalmente o elenco escolhido é de primeiríssima ordem. Paulo Porto e Darlene Glória, no par protagonista, oferecem uma lição de representar, com oscilações fulgurantes, cambiantes notáveis. Se o reprimido Herculano explode quando descobre as delicias do sexo selvagem, algo se muito semelhante ocorre com Geni que matiza o seu comportamento consoantes os interesses e a voz do seu coração, até ao desfecho final. Paulo César Pereio ´é brilhante como o malandro carioca, mas a representação é globalmente muito boa, característica igualmente de quase todos os filmes dirigidos por Arnaldo Jabor.


TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA
Título original: Toda Nudez Será Castigada

Realização: Arnaldo Jabor (Brasil, 1973); Argumento: Arnaldo Jabor, segundo peça teatral de Nelson Rodrigues; Produção: Roberto Farias, Nélio Freire, Arnaldo Jabor, Paulo Porto, Paulo Porto; Música: Astor Piazzolla; Fotografia (cor): Lauro Escorel; Montagem: Rafael Justo Valverde; Decoração: Régis Monteiro; Guarda-roupa: Régis Monteiro; Maquilhagem: Ronaldo Abreu; Direcção de Produção: Saul Lachtermacher, Abigail Pereira Nunes; Assistentes de realização: Emiliano Ribeiro; Som: Geraldo José,Alberto Vianna; Companhias de produção: Ipanema Filmes, Produções Cinematográficas R.F. Farias Ltda, Ventania Filmes; Intérpretes: Paulo Porto (Herculano), Darlene Glória (Gen), Elza Gomes (Tia), Paulo César Peréio (Patrício), Isabel Ribeiro (Tia mais jovem), Henriqueta Brieba (Tia), Sérgio Mamberti (gay), Orazir Pereira (Ladrão boliviano), Abel Pera (velho poeta, cliente), Paulo Sacks (Serginho), Hugo Carvana (Comissário), Waldir Onofre, Teresa Mitota, Orlando Bonfim, Saul Lachtermacher, etc. Duração: 102 minutos; Distribuição em Portugal: Versátil (Brasil) (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos.

domingo, 2 de outubro de 2016

SESSÃO 49 - 4 DE OUTUBRO DE 2016


UM PEIXE CHAMADO WANDA (1988)

Interpretado, escrito e realizado por John Cleese, um dos principais membros do inspirado e irreverente grupo “Monty Python”, “Um Peixe Chamado Wanda” conta ainda no argumento e na realização com a colaboração de um veterano do cinema inglês, Charles Crichton, autor, entre outros, de “Roubei Um Milhão” (The Lavender Hill Mob, 1951), um dos grandes clássicos da comédia da época dos Ealing Studios.
Com estes pergaminhos atrás “Um Peixe Chamado Wanda” afirma-se como uma das mais bem conseguidas comédias de finais do século XX saídas dos estúdios do Reino Unido. Em termos económicos conseguiu um feito memorável, recolhendo de receitas mais de 200 milhões de dólares na sua viagem pelos écrans mundiais. Para um filme que custou 7,5 milhões não se pode dizer que tenha sido um mau negócio. Mas, para lá destes resultados, a verdade é que o filme não só foi de inteiro agrado das grandes plateias como ainda por cima justificou os maiores encómios da parte da crítica especializada. Esta paródia ao filme de acção de mistura com a comédia de bulevard com um toque sentimental e uns pozinhos de erotismo qb acaba por satisfez ao mais exigentes em matéria de comédia, numa altura em que, infelizmente, eram mais os exemplos de perfeitas nulidades repletas de ordinarices primárias do que obras com apelos directos à inteligência, à sensibilidade, ao sentido crítico e à criatividade do próprio espectador.
George Thomason (Tom Georgeson), juntamente com três cúmplices, ensaia um grande roubo de joias. Os acólitos são o seu braço direito, também inglês, Ken Pile (Michael Palin), um grande amigo dos animais e possuidor de um aquário que é a menina dos seus olhos, onde nada um peixe chamado wanda, e dois americanos, a sensual e traiçoeira Wanda Gershwitz (Jamie Lee Curtis) e um antigo agente da CIA, Otto West (Kevin Kline), um idiota convencido que é intelectual porque leu Nietzsche, mas que detesta que lhe chamem estupido. O que acontece com frequência. Até lhe dizerem que é tão estúpido que julga que “The London Underground é um movimento político”.

Todos idealizam um roubo perfeito, não fora uma velhinha que passava ter identificado George, e os companheiros de assalto o terem denunciado à policia que o prende. Depois é cada um por si, a queres ficar com o produto do roubo sem que os outros o percebam. Pelo meio a chave que abre o cofre onde se encontram as joias vai para ao aquário e Otto num momento de tortura psicológica único, vai comento os peixes de Ken Pile até este lhe indicar o local onde se esconde a chave. Até aqui não apareceu John Cleese, mas não nos esquecemos do protagonista. Ele é o emproado e convencido advogado Archibald Leach, que Wanda Gershwitz seduz para conseguir alguns segredos. Posto isto tudo continuaria a rolar desde que Otto, que não é estupido, e também não é irmão de Wanda como faz supor, mas sim seu amante, se deixasse de ciumeiras estupidas quando descobre a sua escaldante amada nos braços do advogado procurando extrair informações de uma forma muito ousada.
A ganância é desde sempre um dos temas mais constantes da comédia. Em todas as formas de narrativa. No romance e no teatro (não esquecer Molière!). Aqui volta a funcionar em pleno. É a cobiça e a total falta de cumplicidade ou solidariedade que tramam este grupo de assaltantes. O filme consegue um excelente ritmo de situações divertidas que se sucedem (de tal forma que, durante uma projecção na Dinamarca, um espectador sucumbiu de tanto rir) sendo de sublinhar o trabalho dos actores, todos eles magníficos, com especial incidência no caso de Kevin Kline que ganhou o Oscar de Melhor Ator Secundário (O filme conquistou ainda mais duas nomeações, para a realização e o argumento). Para lá de John Cleese, também Michael Palin faz parte do grupo Monty Python. Como curiosidades fiansi, diga-se que a personagem interpretada por John Cleese se chama Archie Leach para homenagear o actor americano Cary Grant, cujo nome de baptismo era esse, e que a filha de Archie Leach, Portia, é interpretada pela verdadeira filha de John Cleese, Cynthia Cleese, que aparece creditada como Cynthia Caylor.


UM PEIXE CHAMADO WANDA
Título original: A Fish Called Wanda

Realização: Charles Crichton, John Cleese (este não creditado) (Inglaterra, EUA,1988); Argumento: John Cleese, Charles Crichton; Produção: Steve Abbott, John Cleese, John Comfort, Michael Shamberg; Música: John Du Prez; Fotografia (cor): Alan Hume; Montagem: John Jympson; Casting: Priscilla John; Design de produção: Roger Murray-Leach; Direcção artística: John Wood; Decoração: Stephenie McMillan; Guarda-roupa: Hazel Pethig; Maquilhagem: Lynda Armstrong, Paul Engelen, Barry Richardson; Assistentes de realização: Jonathan Benson, Melvin Lind, David Skynner; Departamento de arte: Leon Apsey, Bruce Bigg, Roy Evans, Brian Read, Alfie Smith; Som: Jonathan Bates, Gerry Humphreys, Chris Munro, Andrew Sissons, Colin Wood; Efeitos especiais: George Gibbs; Efeitos visuais: Alan Church, Simon Margetts; Companhias de produção: Metro-Goldwyn-Mayer, Prominent Features, Star Partners Limited;  Intérpretes: John Cleese (Archie Leach), Jamie Lee Curtis (Wanda Gershwitz), Kevin Kline (Otto), Michael Palin (Ken Pile), Maria Aitken (Wendy), Tom Georgeson (Georges Thomason), Patricia  (Mrs. Coady), Geoffrey Palmer (Juiz), Cynthia Cleese (Portia), Mark Elwes, Neville Phillips, Peter Jonfield, Ken Campbell, Al Ashton, Roger Hume, Roger Brierley, Llewellyn Rees, Michael Percival, Kate Lansbury, Robert Ian Mackenzie, Andrew MacLachlan, Roland MacLeod, Jeremy Child, Pamela Miles, Tom Pigott Smith, Katherine John, Sophie Johnstone, Kim Barclay, Sharon Twomey, Patrick Newman, David Simeon, Imogen Bickford-Smith, Tia Lee, Stephen Fry, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: MGM; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Fevereiro de 1989. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

SESSÃO 48 - 27 DE SETEMBRO DE 2016

O SENTIDO DA VIDA (1983)

Qual o sentido da vida? Eis um bom tema filosófico, possivelmente a questão mais importante e essencial que o homem pode colocar a si próprio e ao universo. Claro que se colocada pelo grupo inglês Monty Python ela só poderá ser respondida com humor, e um humor corrosivo. O que acontece nesta obra de 1983, onde o irrequieto e iconoclasta conjunto de humoristas britânicos destrói por completo qualquer optimismo que possa existir nos seus espectadores. O filme é de um desesperante pessimismo, muito embora no final surjam aquelas frases “politicamente correctas” a apontar caminhos de uma bem-aventurança irrealista e nada condizentes com tudo o que para trás fica registado.
Como sempre nos Monty Python, o projecto não tem nada de uma narrativa tradicional, no sentido de clássico. “O Sentido da Vida” não será uma obra-prima, muito embora tenha alguns dos melhores momentos criados pelos Monty Python. Existem algumas irregularidades ao longo de todo filme e um certo desacerto na duração excessiva de uma ou outra sequência, em particular no caso do pantagruélico frequentador do restaurante, que come desalmadamente e vomita de forma correspondente.
O filme começa com um prólogo opcional. Os espectadores do DVD têm essa vantagem. Podem optar por ver ou não o prólogo. Depois, a loucura do grupo instala-se com uma curta-metragem a anteceder o filme principal, mas que está anexada a este. São 17 minutos que ostentam uma designação própria, “The Crimson Permanent Assurance”. Toda esta parábola sobre o mundo financeiro, agrupando banqueiros e bolsistas, é uma realização de Terry Gilliam. Um grupo de funcionários de uma companhia seguradora resolve revoltar-se, o edifício de The Crimson Permanent Assurance transforma-se num navio de piratas de velas desfraldadas e resolve investir contra os grandes edifícios do centro financeiro local. Os velhos funcionários tomam conta do barco em sentido realista e figurado. Piratas justiceiros contra piratas pela calada, eis a súmula deste primeiro episódio de “O Sentido da Vida”, que irá progredir ao longo de pequenas histórias “morais” sobre os diferentes momentos da vida de um ser, desde o nascimento até à morte, procurando em cada um deles encontrar o sentido da vida.
Esta curta-metragem teve o condão de catapultar Terry Gilliam para o estrelato, dada a qualidade técnica da mesma e a sua prodigiosa invenção. Ele, que já tinha realizado anteriormente “Monty Python e o Cálice Sagrado” e “Os Ladrões do Tempo”, depois disso abalança-se a obras como “Brasil, o outro Lado do Sonho”, “O Rei Pescador” ou “12 Macacos”, entre outras. Muito interessado em animação, “A Seguradora Permanente Crimson” permite-lhe também curiosas incursões neste terreno. Algo que inicialmente estava previsto para andar pelos cinco minutos de duração e que os ultrapassou largamente. Felizmente. Esta é, pois, a contribuição de Terry Gilliam para este filme, enquanto realizador, já que o restante trabalho foi assegurado por Terry Jones, que anteriormente já tinha dirigido “A Vida de Brian”.
O início da vida permite a Terry Jones um momento brilhante que passa dos ambientes de Charles Dickens ao musical com uma ligeireza e harmonia totais. "Every Sperm Is Sacred", que condenada a proibição do uso da pílula pelo Vaticano e que permite enxurradas de filhos em bairros pobres, é uma paródia demolidora admiravelmente conduzida com mão de mestre, ambientada nos bairros industriais de Yorkshire. Para lá de alguns gags magníficos, cria situações de musical dignas de figurar numa antologia do género, ao lado do “Oliver”, de Carol Reed. As vantagens de ser protestante que se lhe seguem permanecem ao mesmo nível, ainda que num registo completamente diferente. Duas cópulas, dois filhos.
As sequências sucedem-se, numa lógica de cronologia de uma vida, como a aula de sexualidade, com o professor a desdobrar da parede uma cama onde vai exemplificar com a própria alguns aspectos da sua temática escolar, ou o volumétrico e obeso Creosante que relembra “os vampiros” de Zeca Afonso, comendo tudo, até rebentar no interior requintado de um luxuoso restaurante. A delirante sequência dos peixes no aquário ou a proximidade da morte, numa clara alusão ao belíssimo “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, são outros tantos episódios a reter e a não esquecer. Mas não se deverá passar em claro o excelente trabalho interpretativo dos vários elementos do grupo, os britânicos Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin, os cinco iniciais, e o norte-americano Terry Gilliam, que se lhes juntou. Todos compõem figuras inesquecíveis e alguns travestis espantosos.


O SENTIDO DA VIDA
Título original: The Meaning of Life
Realização: Terry Jones, Terry Gilliam (Inglaterra, 1983);  Argumento: Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin; Produção: John Goldstone; Música: John Du Prez; Fotografia (cor): Peter Hannan e Roger Pratt (episódio "The Crimson Permanent Assurance"); Montagem: Julian Doyle; Casting: Michelle Guish, Debbie McWilliams; Design de produção: Harry Lange; Direcção artística: Richard Dawking e John Beard (episódio "The Crimson Permanent Assurance"); Decoração: Sharon Cartwright, Simon Wakefield; Guarda-roupa: James Acheson; Maquilhagem: Maggie Weston, Mary Hillman, Christopher Tucker (Mr. Creosote), e ainda Elaine Carew, Sallie Evans e Maureen Stephenson (episódio "The Crimson Permanent Assurance"); Direcção de Produção: David Wimbury; Assistentes de realização: Jonathan Benson, Matthew Binns, Ray Corbett, Derek Harrington, Callum McDougall, Kieron Phipps, Paul Taylor, Gary White, Bob Wright; Som: Philip Chubb, Bob Doyle, Debbie Kaplan; Efeitos especiais:  George Gibbs; Efeitos visuais: Michael Beard, Valerie Charlton, Carol De Jong; Animação: Terry Gilliam, Jill Brooks, Kate Hepburn, Richard Ollive, Tim Ollive, Mike Stuart;  Companhias de produção: Celandine Films, The Monty Python Partnership, Universal Pictures; Intérpretes: Graham Chapman (Chairman / Fish #1 / Doctor / Harry Blackitt / Wymer / Hordern / General / Coles / Narrator #2 / Dr. Livingstone / Transvestite / Eric / Guest #1 / Arthur Jarrett / Geoffrey / Tony Bennett); John Cleese (Fish #2 / Dr. Spencer / Humphrey Williams / Sturridge / Ainsworth / Waiter / Eric's Assistant / Maître D' / Grim Reaper); Terry Gilliam (Window Washer / Fish #4 / Walters / Middle of the Film Announcer / M'Lady Joeline / Mr. Brown / Howard Katzenberg); Eric Idle (Gunther / Fish #3 / 'Meaning of Life' Singer / Mr. Moore / Mrs. Blackitt / Watson / Blackitt / Atkinson / Perkins / Victim #3 / Front End / Mrs. Hendy / Man in Pink / Noël Coward / Gaston / Angela), Terry Jones (Bert / Fish #6 / Mum / Priest / Biggs / Sergeant / Man with Bendy Arms / Mrs. Brown / Mr. Creosote / Maria / Leaf Father / Fiona Portland-Smythe); Michael Palin (Window Washer / Harry / Fish #5 / Mr. Pycroft / Dad / Narrator #1 / Chaplain / Carter / Spadger / Regimental Sergeant Major / Pakenham-Walsh / Rear End / Female TV Presenter / Mr. Marvin Hendy / Governor / Leaf Son / Debbie Katzenberg); Carol Cleveland (Beefeater  (Chadwick / Jeremy Portland-Smythe); Patricia Quinn (Mrs. Williams); Judy Loe, Andrew MacLachlan, Mark Holmes, Valerie Whittington, Jennifer Franks, Imogen Bickford- Smith, Angela Mann, Peter Lovstrom, George Silver, Chris Grant, Sydney Arnold, Guy Bertrand, Andrew Bicknell, Ross Davidson, Myrtle Devenish,  Tim Douglas, Eric Francis, Matt Frewer,  Billy John, Russell Kilmister, Peter Mantle, Len Marten, Peter Merrill, Cameron Miller, Gareth Milne, Larry Noble, Paddy Ryan, Leslie Sarony, John Scott Martin, Eric Stovell, Wally Thomas, Jack Armstrong, Robert Carrick, Douglas Cooper, George Daly, Chick Fowles, Terry Grant, Robin Hewlett, Tommy Isley, Juba Kennerley, Anthony Lang, John Murphy, Terry Rendell, Ronald Shilling, etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal: Universal; Classificação etária: M/ 18 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Maio de 1984.


MONTY PYTHON 
“Monty Python” foi um grupo de humoristas britânicos que surgiu mesmo no final da década de 60, inicialmente na televisão, através de uma série que ficaria lendária, “Monty Python's Flying Circus” (o programa de estreia foi para o ar na BBC a 5 de Outubro de 1969 e agrupou 45 episódios divididos em 4 temporadas). O sucesso foi fulminante e o grupo diversificou a sua actividade pelo teatro, o cinema, a rádio, a imprensa, a literatura, os jogos de computador, etc. Eram seis os seus elementos, Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin, os cinco iniciais, todos ingleses, a que se juntou Terry Gilliam, americano, vindo da revista “Mad”. Todos escreviam e interpretavam as obras em que intervinham. O seu estilo de humor não passou despercebido, e tornou-se uma fonte de inspiração para humoristas de todo o mundo, desde os EUA até Portugal. Eram anárquicos e caóticos, entre o surrealismo e o non sense.
O grupo esteve unido durante bastantes anos (fecharam a porta em 1983), depois cada um deles seguiu a sua carreira isolada, mantendo, no entanto, muitas das características que definiram o grupo. Todos, excepto Graham Chapman que morreu em 1989, com 48 anos. Em Julho de 2014, anunciou-se o regresso do grupo para um espectáculo no “O2 Arena” de Londres, Quando foi anunciado o evento, os bilhetes esgotaram em 43 segundos!
Nos Estados Unidos, vários programas lhe devem influência, como “Late Night with Conan O'Brien” ou “Saturday Night Live”, “South Park”, “Adult Swim”, entre muitos outros que assumem o surrealismo e o absurdo. Em Portugal, Herman José ou os Gato Fedorento contam-se entre os admiradores dos Monty Python.
Num documentário, “Live at Aspen” (1998), o grupo revelou como escolheu o nome: Monty surgiu como tributo a Lord Montgomery, um lendário general britânico da II Guerra Mundial, e Python apareceu como palavra que soasse evasiva e divertida. Em 2005, num inquérito do Channel 4 para escolher “O Comediante dos Comediantes”, três dos seis actores dos Monty Python foram incluídos entre os 50 maiores humoristas. Michael Palin ficou em trigésimo, Eric Idle em vigésimo-primeiro e John Cleese em segundo lugar, sendo superado apenas por Peter Cook.
A actividade do grupo ficou registada em diversos domínios:

TELEVISÃO: Monty Python's Flying Circus (1969–1974); Monty Python's Fliegender Zirkus (1972); Monty Python's Personal Best (2006)
CINEMA: And Now for Something Completely Different (E Agora Para Algo Completamente Diferente) (1971); Monty Python and the Holy Grail (Monty Python e o Cálice Sagrado) (1975); Monty Python Meets Beyond the Fringe (1976); Monty Python, The Life of Brian (A Vida de Brian) (1979); Monty Python Live at the Hollywood Bowl (Monty Python Ao Vivo no Hollywood Bowl) (1982); Monty Python, The Meaning of Life (O Sentido da Vida) (1983); Não são do grupo, embora sejam atribuídos, e participem do espírito:
Jabberwocky (1977); Erik, the Viking (Erik, O Viking) (1989)
ÁLBUNS: Monty Python's Flying Circus (1970); Another Monty Python Record (1971); Monty Python's Previous Record (1972); The Monty Python Matching Tie and Handkerchief (1973); Monty Python Live at Drury Lane (1974); The Album of the Soundtrack of the Trailer of the Film of Monty Python and the Holy Grail (1975); Monty Python Live at City Center (1976); The Monty Python Instant Record Collection (1977); Monty Python's Life of Brian (1979); Monty Python's Contractual Obligation Album (1980); Monty Python's Meaning of Life (1983); Monty Python's The Final Rip Off (1988); Monty Python Sings (1989); The Ultimate Monty Python Rip Off (1994); The Instant Monty Python CD Collection (1994); Monty Python's Spamalot (Músicas da versão da Broadway do filme “Monty Python - Em Busca do Cálice Sagrado” com Tim Curry a interpretar Rei Arthur) (2005); The Hastily Cobbled Together Album (nunca lançado, ao que consta)
TEATRO: Monty Python's Spamalot - Musical inspirado no filme Monty Python - Em Busca do Cálice Sagrado.
Monty Python's Flying Circus - A primeira e única versão autorizada do programa de TV, apesar de ser apresentada em francês; Monty Python Alive – o regresso em Julho de 2014.

MONTY PYTHON: os membros do grupo:
Graham Chapman (1941-1989)
Nasceu a 8 de Janeiro de 1941, em Melton Mowbray, Leicester, Inglaterra. Estudou medicina em Cambridge. Ficou célebre, sobretudo, como argumentista, e como actor por duas das suas criações em cinema, o Rei Artur, em “Monty Python e o Cálice Sagrado”, e Brian Cohen, em “A Vida de Brian”. Gay e dependente do álcool, morre vítima de cancro na garganta, a 4 de Outubro 1989. No elogio fúnebre, Michel Palin disse: “Graham Chapman está entre nós neste momento. Se não estiver neste momento, estará dentro de vinte e cinco minutos”. 
Principais filmes como actor: 1969: The Magic Christian (Um Beatle no Paraíso), de Joseph McGrath; 1970: The Rise and Rise of Michael Rimmer, de Kevin Billington; 1971: The Statue (A Estátua), de Rod Amateau ; 1972: And Now for Something Completely Different (Os Gloriosos Malucos à Solta), de Ian MacNaughton; 1975: Monty Python and the Holy Grail (Monty Python e o Cálice Sagrado), de Terry Gilliam e Terry Jones; 1978: The Odd Job, de Peter Medak; 1979: Life of Brian (A Vida de Brian), de Terry Jones; 1983: Monty Python Live at the Hollywood Bowl, de Terry Hughes e Ian MacNaughton; Monty Python's the Meaning of Life), de Terry Gilliam e Terry Jones; Yellowbeard (As Loucas Aventuras de Barba Amarela, o Pirata), de Mel Damski; 1989: Stage Fright, de Brad Mays.
John Cleese (1939 -)
Nasceu a 27 de Outubro de 1939, em Weston-super-Mare, North Somerset, Inglaterra. O nome de família era Cheese, mas o pai mudou-o para Cleese quando esteve na tropa. Cleese estudou no colégio de Clifton, em Bristol, onde apareceu nalguns espectáculos. Passou pela universidade de Cambridge para estudar Direito, onde encontrou Graham Chapman. Eram os autores de grande parte dos argumentos do grupo. Fora dos Monty Python ficou célebre pela criação de Basil Fawlty, em “Fawlty Towers”.
John Cleese participou em dezenas de filmes. Ficam aqui apenas alguns títulos: 1968: The Bliss of Mrs. Blossom (A Felicidade da Senhora Blossom), de Joseph McGrath; 1969: The Best House in London de Philip Saville; 1969: The Magic Christian (Um Beatle no Paraíso), de Joseph McGrath; 1975: Monty Python and the Holy Grail (Monty Python e o Cálice Sagrado), de Terry Jones e Terry Gilliam; 1977: The Strange Case of the End of Civilization as We Know It, de Joseph McGrathes; 1979: Monty Python, The Life of Brian (Monty Python, A Vida de Brian), de Terry Jones; 1981: Time Bandits (Os Ladrões do Tempo), de Terry Gilliam; 1983: Monty Python: The Meaning of Life (Monty Python, O Sentido da Vida), de Terry Jones e Terry Gilliam; 1985: Silverado (Silverado), de Lawrence Kasdan; 1986: Clockwise (Pontualmente Atrasado), de Christopher Morahan; 1988: A Fish Called Wanda (Um Peixe Chamado Wanda), de Charles Crichton; 1989: Erik The Viking, de Terry Jones; 1994: Frankenstein (Frankenstein de Mary Shelley), de Kenneth Branagh; 1996: Fierce Creatures (Creaturas Ferozes), de Fred Schepisi e Robert Young; 1996: The Wind in the Willows; 1999: The World Is Not Enough (007 - O Mundo Não Chega), de Michael Apted; 2001: Rat Race (Está Tudo Louco!), de Jerry Zucker; 2001: Harry Potter and the Sorcerer's Stone (Harry Potter e a Pedra Filosofal), de Chris Columbus; 2002: Harry Potter and the Chamber of Secrets (Harry Potter e a Câmara dos Segredos), de Chris Columbus; 2002: Die Another Day (007 - Morre Noutro Dia), de Lee Tamahori; 2004: Shrek 2 (Shrek 2),  de Andrew Adamson, Kelly Asbury (voz); 2004: Around the World in 80 Days (A Volta ao Mundo em 80 Dias), de Frank Coraci; 2007: Shrek, the Third (Shrek, 3) de Chris Miller e Raman Hui (voz); 2008: The Day the Earth Stood Still (O Dia em que a Tera Parou), de Scott Derrickson; 2009: The Pink Panther 2 (A Pantera Cor-de-Rosa, 2), de Harald Zwart; 2010: Shrek Forever After (Shrek para Sempre), de Mike Mitchell (voz); 2010: Spud 2: The Madness Continues, de Donovan Marsh; 2013: Spud 2: The Madness Continues, de Donovan Marsh.
Terry Gilliam (1940 -)
Nasceu em Minneapolis, Minnesota, EUA, a 22 de Novembro de 1940. Foi o único Monty Python não inglês (naturalizou-se depois). Trabalha sob a orientação de Harvey Kurtzman na revista "Mad" como cartoonista, depois na "Help". Viaja até França e instala-se na revista "Pilote". Passa a Inglaterra, colabora como gráfico em “Do Not Adjust Your Set” e depois no “The Flying Circus”, associando-se aos Monty Python. 
Principais filmes como realizador: 1975: Monty Python and the Holy Grail (Monty Python e o Cálice Sagrado), com Terry Jones; 1977: Jabberwocky (Aventuras em Terras do Rei Bruno, o Discutível); 1981: Time Bandits (Os Ladrões do Tempo); 1983: Monty Python: The Meanig of Life (O Sentido da Vida); 1985: Brazil (Brazil: O Outro Lado do Sonho); 1988: The Adventures of Baron Munchausen (A Fantástica Aventura do Barão); 1991: The Fisher King (O Rei Pescador); 1995: Twelve Monkeys (12 Macacos); 1998: Fear and Loathing in Las Vegas (Delírio em Las Vegas); 2005: The Brothers Grimm (Os Irmãos Grimm); 2006: Tideland (Tideland - O Mundo ao Contrário); 2009: The Imaginarium of Doctor Parnassus (Parnassus - O Homem Que Queria Enganar o Diabo); 2013: The Zero Theorem (O Teorema Zero); 2014: The Man Who Killed Don Quixote (em pós-produção).
Filmografia (parcial) como actor: 1975: Monty Python and the Holy Grail (Monty Python e o Cálice Sagrado), de Terry Gilliam e Terry Jones; 1977: Jabberwocky (Aventuras em Terras do Rei Bruno, o Discutível); 1981: Time Bandits (Os Ladrões do Tempo); 1983: Monty Python: The Meanig of Life (O Sentido da Vida), de Terry Jones; 1985: Brazil (Brasil: O Outro Lado do Sonho); 1988: The Adventures of Baron Munchausen (A Fantástica Aventura do Barão); 1985: Cinématon no 601, de Gérard Courant; 1985: Spies Like Us (Espiões Como Nós), de John Landis; 1988: The Adventures of Baron Munchausen (A Fantástica Aventura do Barão); 2002: Lost in la Mancha, de Keith Fulton e Louis Pepe, documentário; 2006: Enfermés Dehors, de Albert Dupontel; 2012: A Liar's Autobiography: The Untrue Story of Monty Python's Graham Chapman; 2013: Neuf Mois Ferme (Gravidez de... Alto Risco), de Albert Dupontel; 2015: Jupiter Ascending (A Ascenção de Jupiter), de Lana e Andy Wachowski
Eric Idle (1943)
Nasceu a 29 de Março de 1943, em South Shields, Tyne and Wear, Inglaterra. Desde o seu aparecimento, os Monty Python formaram duplas de escrita, Cleese e Chapman, Jones e Palin, e dois isolados, Gilliam, que se ocupava mais da animação e da realização, e Idle, que ficou satisfeito por trabalhar a solo, sobretudo em gags de estrutura linguística. Colega mais novo de Cleese e Chapman na universidade de Cambridge, após o fim dos Python arrancou para uma carreira a solo, em séries como “Rutland Weekend Television” ou “The Rutles”, com aparições curtas em diversos filmes (“South Park”, 102 Dalmatians), ou séries como “The Simpson”. Em 2005 conta com um grande sucesso, “Spamalot”, paródia sobre o Santo Graal, e falou-se numa adaptação a musical de “A Vida de Brian”. Como actor aparece obviamente em todos os filmes dos Monthy Pithon.
Terry Jones (1942 - )
Nasceu a 1 de Fevereiro de 1942, em Colwyn Bay, no norte do país de Gales. Um dos mais entusiásticos e influentes elementos do grupo, sobretudo para manter a sua coesão. Argumentista, actor e realizador, Terry Jones apresentou na BBC uma série de documentários históricos, “Terry Jones' Medieval Lives” (2005), a que se seguiu “Barbarians” (2006). Escreveu no “The Guardian” uma crónica semanal demolidora para a política de Tony Blair. Depois virou-se para o teatro musical e, no início de 2008, em colaboração com Luís Tinoco, estreou em Portugal, “Evil Machines”, uma espécie de ópera baseada no seu livro com o mesmo nome.
Filmografia como realizador: 1975: Monty Python and the Holy Grail, com Terry Gilliam; 1979: Monty Python's Life of Brian; 1983: Monty Python's The Meaning of Life; 1987: Personal Services; 1989: Erik the Viking; 1996: The Wind in the Willows.
Michael Palin (1943 - )

Nasceu a 5 de Maio de 1943, em Sheffield, South Yorkshire, Inglaterra. Estudou em Oxford, onde encontra Jones, com quem passa a fazer parelha na escrita. Depois da sua colaboração com os Monty Python, Palin tornou-se conhecido através de inúmeros documentários de viagens realizados para a BBC, nomeadamente a série “Pole to Pole” e “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, seguindo a rota de Phileas Fogg no romance de Júlio Verne.

domingo, 11 de setembro de 2016

SESSÃO 49 - 13 DE SETEMBRO DE 2016



OITO VIDAS POR UM TÍTULO (1949)


No final da década de 40 e inícios da de 50 do século XX, um dos estúdios ingleses mais célebres, o Ealing Studio, produziu um conjunto de comédias verdadeiramente invulgar, pela qualidade do seu humor, pelas características absolutamente britânicas desse humor, pela excelência da representação (onde sobressaiu Alec Guiness, entre outros). Títulos como “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), ou “The Ladykillers” (1955) são hoje em dia considerados clássicos indiscutíveis do chamado humor inglês. “Oito Vidas por um Título”, “O Homem do Fato Claro” e “O Quinteto era de Cordas”, sobretudo estes três títulos, são indiscutíveis referências desta época do cinema britânico e, igualmente, do trabalho excepcional de um actor que muitos consideram dos melhores de sempre em todo o mundo, Alec Guiness.
“Oito Vidas por um Título” tem como título original “Kind Hearts and Coronets”, que é uma citação ligeiramente alterada de um poema de um dos mais prestigiados escritores ingleses, Alfred Lord Tennyson. O poema, “Lady Clara Vere de Vere”, surgiu integrado no livro de 1842, “The Lady of Shalott and Other Poems”, e podia ler-se assim: “Trust me, Clara Vere de Vere, / From yon blue heavens above us bent / The gardener Adam and his wife / Smile at the claims of long descent. / Howe’er it be, it seems to me, / ’Tis only noble to be good. / Kind hearts are more than coronets, / And simple faith than Norman blood.” O título da obra de Robert Hamer filia-se, portanto, neste poema de meados do século XIX, uma época vitoriana, onde os contrastes sociais eram imensos, a hipocrisia e a violência constantes.
O filme de Robert Hammer parte de um argumento escrito pelo próprio Robert Hamer, de colaboração com John Dighto, segundo romance de Roy Horniman, “Israel Rank: The Autobiography of a Criminal” (1907), que relatava a vida e as façanhas criminosas de um judeu de ascendência italiana que confessara a autoria de vários crimes cometidos ao longo da vida numa sistemática vingança. O romance conheceu grande sucesso na época, pelo tom cínico e irónico com que relatava as proezas amorais de um herói pouco provável.
O que nos dá o filme: em 1868, na cela de uma prisão londrina, na véspera da sua execução, Louis Mazzani (Dennis Price), duque de Ascoyne, escreve as memórias, remontando a tempos passados quando a mãe se viu privada dos seus direitos de nobreza, como represália familiar por ter casado com um “simples” cantor italiano. Por causa disso, Louis Mazzani jura vingança e procura recuperar o posto nobilitário perdido, para o que precisa de “anular” oito membros da família Ascoyne. A narrativa é sóbria e delicada, contrastando em tudo com o narrado: um a um os vários possíveis pretendentes à sucessão vão sendo afastados do caminho, através de um pouco de veneno, um tiro de caçadeira, um pequeno naufrágio, uma morte natural, um balão atravessado por uma seta, uma explosão, uma colisão marítima, ou mesmo um apetitoso caviar… Há de tudo, um banqueiro, um padre, um capitão da marinha, um militar, uma senhora sufragista, um fotógrafo amador, e o mais espantoso é que os oito representantes da dinastia Ascoyne são todos interpretados brilhantemente por um único actor, Alec Guiness. De início, ele ia apenas interpretar quatro papéis, mas à medida que foi interiorizando a família, acabou por a dominar por completo, com uma mestria invulgar. Guiness era já um actor célebre, mas este filme encarregou-se de projectar o seu talento, colocando-o entre os melhores actores do mundo. Diga-se que o filme conta ainda com duas outras representações dignas de referência, Dennis Price, no cínico e eficaz serial killer dos Ascoynes, e a belíssima Joan Greenwood, na figura da jovem Sibella, uma notável presença, senhora de uma voz absolutamente inesquecível. 


Situando-se num período vitoriano, com a burguesia em ascensão, que se estabelecia como "middle class", limitada a norte pela "upper class", constituída por uma aristocracia em decadência, mas ainda vigorosa e a ocupar lentamente os lugares da alta finança e da governação, esta comédia de humor negro, mas de delicado e elegante humor (o que o torna ainda mais negro), é um retrato curioso dessa época. A família Ascoyne é um bom exemplo dessa aristocracia que domina, mas que se autodestrói pela ganância e pelos jogos de influência e de poder. Tudo com uma fleuma e uma discrição próprias da reserva britânica, ou não fosse o “humor negro” uma das características mais constantes da cultura inglesa.
Todos estes pormenores são descritos por Louis Mazzani que os fixa numas “memórias” que pretende deixar para a posteridade. Espera-o a forca, na manhã seguinte, depois de ter sido acusado e sentenciado (injustamente, neste caso) pelo assassinato de alguém que ele efectivamente não tinha morto. Quando o seu final de aproxima, ocorre o imprevisto, e quando este o coloca à porta da cadeia, uma nova reviravolta se anuncia. A ironia nunca se afasta desta obra que se torna de tal forma incómoda que nos EUA foi censurada, tendo-lhe sido amputados cerca de seis minutos e alterado o final (a ambiguidade do final inglês foi reduzida a um final mais politicamente correcto).
Claro que este filme, e seguramente a obra de Roy Horniman que lhe está na base, devem muito a “O Assassinato Considerado como uma das Belas-Artes”, de Thomas de Quincey, aparecido em livro em 1854, depois de ter surgido no “Blackwood's Magazine” em 1827, depois em 1839, acompanhado de uma continuação, e finalmente em volume, com um importante desenvolvimento dedicado aos crimes de John Williams. Essa visão do assassinato como uma “arte”, mais precisamente uma das “Belas-Artes”, reflecte esse humor muito próprio dos ingleses, e que este filme tão bem exemplifica (tal como outras obras de autores tão diversos de Hitchcock aos Monty Python). Diga-se, concluindo, que o título francês, “Noblesse Oblige”, se sente muito mais apropriado do que o português “Oito Vidas por um Título”, demasiado prosaico e pragmático para traduzir correctamente o espírito desta comédia brilhante.
Não só no plano do assassinato o filme se mostra um tanto ou quanto iconoclasta. Na verdade, em 1949, o adultério não era actividade muito vista no cinema, e nunca antes o fora mostrado numa das inúmeras películas produzidas pelos Ealing Studio, então dirigidos por Michael Balcon. Foi, pois, com alvoroço que o produtor viu o filme depois de rodado, descobrindo que Louis Mazzani, além de assassino, era igualmente um obstinado adúltero que mantinha com Sibella uma relação carnal (apenas sugerida no filme, mas sugerida de forma muito persuasiva e intensa) para lá do casamento desta com um amigo. Balcon ainda tentou remediar as coisas, mas Hamer era um realizador difícil de dobrar e manteve o filme intocável nesse aspecto.
A belíssima fotografia a preto e branco de Douglas Slocombe, a direcção artística de William Kellner, e a área “Il mio Tesoro”, da ópera “Don Giovanni”, de Mozart, são outros tantos motivos que levaram os inqueridos do British Film Institute, em 1999, a colocar “Kind Hearts and Coronets” em sexto lugar, entre os melhores filmes de sempre da cinematografia inglesa.


OITO VIDAS POR UM TÍTULO
Título original: Kind Hearts and Coronets
Realização: Robert Hamer (Inglaterra, 1949); Argumento: Robert Hamer, John Dighto, segundo romance de Roy Horniman; Produção: Michael Balcon, Michael Relph; Música: Ernest Irving; Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Peter Tanner; Direcção artística: William Kellner; Guarda-roupa: Anthony Mendleson; Maquilhagem: Barbara Barnard, Harry Frampton, Pearl Orton, Ernest Taylor; Direcção de produção: Leigh Aman, Hal Mason; Assistente de realização: Norman Priggen, John Hewlett, David W. Orton; Departamento de arte: Grace Bryan-Brown, Norman Dorme, Roger Hopkin, Jack Shampan, V. Shaw, R. Thurgarland; Som: Stephen Dalby, John W. Mitchell, Norman King; Efeitos especiais: Geoffrey Dickinson, Sydney Pearson; Companhia de produção: Ealing Studios (An Ealing Studios Production); Intérpretes: Dennis Price (Louis), Valerie Hobson (Edith), Joan Greenwood (Sibella), Alec Guinness (a familia D'Ascoyne: o duque / o banqueiro / o padre / o general / o almiranto carrasco), Clive Morton (Governador da prisão), John Penrose (Lionel), Cecil Ramage, Hugh Griffith (Lord High Steward), John Salew (Mr. Perkins), Eric Messiter (Burgoyne), Lyn Evans, Barbara Leake, Peggy Ann Clifford, Anne Valery, Arthur Lowe, Stanley Beard, Maxwell Foster, Peter Gawthorne, Molly Hamley-Clifford, Leslie Handford, Nicholas Hill, Fletcher Lightfoot, Cavan Malone, Laurence Naismith, Gordon Phillott, Jeremy Spenser, Ivan Staff, Richard Wattis, Carol White, Harold Young, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 29 de Junho de 1950.

EALING STUDIOS
“Ealing Studios” é uma produtora de filmes para cinema e de entretenimento diverso para televisão. Tem uma longa história, sendo presentemente, o mais antigo estúdio de cinema a operar no mundo. Nasceu em 1902, no local chamado Ealing Green, em Londres Oeste. Will Barker fundou aí uma produtora chamada “White Lodge”. Em 1931, o produtor teatral Basil Dean, já no sonoro, funda nesse espaço a Associated Talking Pictures, que se mantém em funcionamento até 1938, quando entra em declínio. Michael Balcon, vindo da MGM, passa então a controlar os destinos da produtora, insufla-lhe uma nova vida, com outros colaboradores e actores, refrescando o ambiente, tornando-a numa casa produtora lendária, sobretudo através das suas comédias, as “Ealing comedies”, que se instituíram rapidamente clássicos, a partir do fim da II Guerra Mundial: “Kind Hearts and Coronets” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), e “The Ladykillers” (1955). Os filmes da companhia passam então a ser distribuídos sob a sigla da “Rank Organisation”.
Durante este tempo, mas sobretudo nos anos 30 e 40, os Ealing Studios não só criam os seus actores de comédia típicos, como Gracie Fields, George Formby, Stanley Holloway ou Will Hay, mais tarde Alec Guiness, como se notalibilizam ainda por outro tipo de filmes, como os documentários realistas durante a II Guerra Mundial, com títulos que se recordam “Went the Day Well?” (1942), “The Foreman Went to France” (1942), “Undercover” (1943), “San Demetrio London” (1943), entre outros. Ainda em 1945, produz um thriller em episódios que deixou marca: “Dead of Night”.
Depois, durante quarenta anos, a BBC, entre 1955 e 1995, alugou o espaço e rodou ainda grande parte do seu material televisivo, telefilmes, séries, programas diversos. Chegou a possuir nesse espaço mais de 50 salas de montagem. A partir de 2000, a Ealing Studios passou sobretudo a casa distribuidora, mas algumas obras foram ainda rodadas nesses estúdios, como “The Importance of Being Earnest” (2002) ou “Shaun Of The Dead” (2004). Uma escola de cinema também se serve destes estúdios, a The Met Film School London.  A morada é: 31, Grange Road, Ealing, Londres.

Os principais filmes dos Ealing Studios: “Hue and Cry” (1947), “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), “The Titfield Thunderbolt” (1953), “The Cruel Sea” (1953), “The Ladykillers” (1955), “Barnacle Bill” (1956).